13 de Junho de 2025 | Coimbra
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António Inácio Nogueira

TESTEMUNHOS: País dos primos

22 de Dezembro 2023

Havia um colega meu dos tempos do Liceu, jovem bastante politizado, por sinal, que
afirmava ser Portugal um «país de primos» e ser a Guarda, onde vivíamos, uma das muitas
catequeses dos primos. As «cunhas» eram da família dos primos, por conseguinte todos eles
cunháveis.

Lembrei-me hoje com saudade, deste amigo, já falecido, que tanto nos ensinava no

contexto da política e da vida nos anos de 1960.

Lembrei-me dele, especialmente, por causa das meninas luso-brasileiras, tratadas
em Portugal a uma doença complexa, com um medicamento caro, pago pelo erário público.
Muitos consideram este tratamento privilegiado, para exercício do qual terão, presumivelmente,
participado o Presidente da República, o Governo, a instituição hospitalar onde foram tratadas
e médicos assistentes no tratamento.

Os meios de comunicação social não param de elaborar sobre o assunto. Os
partidos políticos aproveitam para incendiar as eleições e o Partido Socialista. Estamos, todos o
afirmam, perante um caso de cunha refinada, compadrio e troca de favores.

Já ouvi dizer a muita gente, em tom sarcástico, “isto foi o que fez o 25 de Abril, antes

não se dava nada disto.”

Como é calunioso dizer isto! Eu vivi os dois períodos. O antes e o depois, já sou

velho, e sei o que se passava e dizia.

Cunhas para não ir para a Guerra Colonial ou arranjar uma especialidades que não
implicasse a vida dura dos atiradores, eram às centenas; cunhas aos professores para que
passassem os protegidos eram o dia-a-dia; numa altura de forte analfabetismo, baixas
escolaridades e diminutas acessibilidades ao ensino, o designado 5oano era um privilégio.
Neste pressuposto, o compadrio e a troca de favores eram comuns. Cunhas para empregos
nos bancos, seguros, segurança social, tribunais, finanças, secretarias de escolas, câmaras
municipais e outras instituições públicas. Nas cidades e vilas mais pequenas, paroquiais e
periféricas, eram de evidência permanente. Os «primos» mais desfavorecidos e desconhecidos
e sem poder, tudo faziam para chegar aos outros «primos» conhecidos, prestigiados ou
ocupando cargos de chefia. Estes, por sua vez, tudo empreendiam para se chegarem
uns aos outros, a fim de beneficiarem e ajeitarem as «compadrices» convenientes.

Marco Alves jornalista prestigiado, realizou uma profunda investigação a que deu o
nome Salazar Confidencial, a História Secreta da Rede de Cunhas e Favores do Estado Novo.
Neste belíssimo trabalho confirma-se muito do que acima afirmei.

Afirma Marco Alves: “Salazar apesar da reputação que construiu de ser ético e
rigoroso, não se coibia de usar os privilégios do cargo e a máquina pública para resolver os

seus problemas e os de quem o rodeavam.

Dizia-se que o Estado Novo iria romper com o que considerava terem sido algumas
práticas dos regimes anteriores, afirma o autor. Pelos vistos nada disso aconteceu. “Os
ministros e secretários de estado, foram peões de centenas de cunhas e favores de e para
Salazar.”

Das muitas centenas de cartas que a investigação em apreço nos apresenta, escolhi
uma, pela grave razão de que o compadrio no Estado Novo ser capaz de alterar uma resolução
judicial:

……………….., a 28 de outubro de 1961, numa carta remetida de Loulé:

…Dignissimo Senhor Presidente do Conselho.

Mais uma vez a importuná-lo mas profundamente reconhecida por tão grande
favor, de me ter livrado do sofrimento da prisão, peço a deus que o recompense. Hoje
envio uma simples oferta…era de minha vontade enviar este bolo numa boa salva de
prata como bem merece, mas a minha pobreza impede de o fazer…

Conclusão: fomos e continuamos a ser um «país de primos», só que os
intervenientes familiares são outros. Portugal não foi fundado Hoje. Tem memórias e história.
O meu amigo e colega, se hoje fosse vivo, continuaria a assinar por baixo a teoria
por ele defendida tão acerrimamente: somos um «país de primos» e enquanto isto se
mantiver, não vamos, como país, a lado nenhum .


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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