“A ideia de que quando se passa pela perda de alguém a vida continua mas ficamos num sítio, mulheres e homens estátua, uma parte de nós morre, e esse luto não é só a morte de uma pessoa exterior é também a morte do nosso interior, essa ideia do tableau vivant é uma ideia muito interior, de nos sentirmos fora de tempo. São as chaves da experiência do luto, da perda.” ( in Público) – Catarina Vasconcelos
Vi um filme que me encantou. Pela primeira vez disse para com os meus botões… o cinema português não é tão mau como nos fazem fazer crer.
Nascida em Lisboa, em 1986, Catarina Vasconcelos começou por estudar música, logo a partir de criança, até descobrir o seu caminho nas Belas Artes. Tirou também um mestrado em antropologia visual. Foi por aqui que descortinou a senda para o cinema. Cursou no Real College, tirando Comunicação Visual. Nesse contexto, fez a primeira curta-metragem, trabalhada em super 8, premiada no prestigiado festival Cinema du Réel 2014. Só depois se empenha na conceção da “A Metamorfose dos Pássaros”.
As imagens deste filme e o seu texto arrebatam-nos pelo território íntimo de uma família e de uma cineasta. É um documentário – filme de família um ensaio poético, filme de aventuras também. O que eu sei é que já é um colecionador de prémios, porventura, dezasseis. No centro de toda esta caminhada está a morte.
Tudo se inicia quando um avô da Catarina anuncia a sua viagem de desprendimento das coisas do mundo em direção ao reencontro com a mulher que já partira, sabe-se lá para onde?. A produtora Catarina persegue esse amor, segue a vida do casal que Henrique, ele assim se chama, formou com a mulher. Depois foi a história de uma família e seis filhos, dez anos depois da morte da mãe.
Desabafa Catarina: “Eu queria que [o filme] fosse sobre esta família, mas que pudesse falar com outras pessoas. […] O tempo que ele demora é quase o tempo que eu demoro a conseguir sair de mim para chegar aos outros. Consegui libertar-me da minha família e do medo de inventar sobre eles, para poder inventar à vontade. Isso foi muito importante” (Agência Lusa, in Jornal Público).
É por isso que Catarina Vasconcelos apresenta “A Metamorfose dos Pássaros” como um “documentário-ficção”, um filme que está na via de um “híbrido de formas” fundamentado nas memórias das infâncias e juventudes da família e inteirado pela ficção.
Esta é uma obra que pertence às famílias e seus mistérios. Em particular, à família da realizadora e à figura de Beatriz, sua avó, que se casou com Henrique, oficial da marinha, aos 21 anos. Com o marido no mar, Beatriz tratou de seis filhos, entre os quais Jacinto, o pai da cineasta. Ser mãe, imaginar, viver sem liberdade, tudo é metamorfose criativa e emocional nesta primeira longa-metragem de Catarina.
“Através de cartas, quadros, flores, cortinas, estatuetas, puzzles e barcos vai-se construindo um universo perfeito, com vida e com morte, mas sobretudo com o coração. E o coração de Catarina é resistente e forte, é doce e cheio de carácter, tem ambição e engenho. Voa Catarina voa porque ainda vivem nos teus pensamentos “todas as coisas excecionais que constrói o universo daqueles que não temem a gravidade”. (a minha vénia ao Público e a Miguel Valverde)
Diz Catarina na sua entrevista ao jornal citado: “A Metamorfose dos Pássaros, a relação com a morte é um tema que me inquieta muito, apesar de ser extremamente banal. E aí só poderia falar do ponto de vista pessoal. Nem sequer vi como uma questão de coragem, mas como o único caminho a tomar.
Essas pessoas são a minha família – o meu pai, os meus tios. Nas conversas longas que tinha com eles ficava sempre com a sensação de que havia algo por dizer, um mistério, um segredo. Essa ideia perseguiu-me. Mais tarde vim a perceber que não havia segredo nenhum, que há coisas que não são ditas em todas as famílias. Mas isso deixava-me um problema: se havia coisas de que não sabia como poderia tratar delas? (…). A auto ficção está por isso relacionada com os ingredientes do próprio filme. Mas ajudou-me. Não tenho a necessidade de dar uma só realidade. (…). É uma forma de contar a história de alguém que não conheci e recontar a minha própria história.”
Uma vez disseram: “Achamos que as famílias servem para nos consolar, mas elas servem para nos confrontar”. Há uma relação forte e próxima, com problema e conflitos, e onde às vezes há uma sinceridade violenta. Foi essa frontalidade que fez com que o filme fosse possível. Todos lutámos contra os próprios medos. O meu pai pôs muitas coisas em causa, isso revelou-se fundamental para repensar a estrutura do filme. Passou por várias versões até chegar a esta. Questões pertinentes e às vezes um bocado maçadoras. Mas eu sinto que o filme foi importante para desatar pequenos nós familiares.”
Assim é que é Catarina. Gosto desta maneira de pensar e em muitos dos meus livros (do autor da crónica) desta forma os trato. Adoro testemunhos e memórias, história e ficção para completar o enredo. Assim se faz o futuro, através do passado ainda que ficcionado quando é preciso. Ligo, por vezes, as pontas com uma corda que nunca parte. Só me falta saber o que é a morte que leva a corda a partir de tão presa.
(Com as devidas vénias ao Público de 8 de setembro 2021, pelos ensinamentos que me deu e ao autor que tratou o assunto em questão de forma tão eloquente).