Há ruas que nos parecem pouco interessantes para visitar e se revelam pérolas a aguardar um outro olhar. A Afonso Henriques. A toponímia antecipa a importância de uma Avenida que, não sendo coisa pouca!, se assume guardiã de memória histórica ao convocar o nosso primeiro Rei para padrinho. Atravessemos vindos de Celas. Edifício com uma arquitetura singular, magníficos painéis azulejares e encantador cata-vento, já para não falar da escadaria e varandim ou loggia que nos servem de cenário ao vencermos declive urbano atravessando o jardim da casa… o Centro de Saúde tem no ADN a Clínica do Dr. José Bacalhau; quase em frente, edifício reinventado e com novas dinâmicas acolhe serviços da entidade Turismo Centro de Portugal, mantendo a tipologia e ambiente de uma acolhedora casa de habitação; um pouco mais à frente um marco identitário da Avenida: a Escola Secundária de José Falcão, edifício (na verdade, um quarteirão) que mantém as funções para as quais foi construído e batizado como Liceu de D. João III (1936), uma ponte inquestionável com a vetusta (palavra de valor superior a 5000 réis!) Universidade, mantendo-se como um dos mais icónicos edifícios escolares da cidade. Herdeiro da história do Liceu de Coimbra, um dos 3 primeiros liceus a ser criado no país (anos 1830), funcionando então no edifício do extinto Colégio das Artes e no do Colégio de S. Bento a partir de 1870; em 1914 assume o nome de José Falcão e a partir de 1928 passa a partilhar o edifício com o novel Liceu de Júlio Henriques; estudante no Liceu, ainda no Colégio de S. Bento, Adolfo Correia da Rocha, pela pena do seu pseudónimo, deixou-nos esta memória: “as aulas do sexto ano eram na ala virada a nascente dum velho e belo edifício que fora em tempos convento, e a paisagem entrava sem cerimónia pelas janelas. Largas e abertas sobre um grande e harmonioso jardim [Botânico] que descia a encosta em amplos patamares, emolduravam nos seus caixilhos de castanho uma sinfonia de montes e de cores, que o rio [Mondego] transparente refletia” (“A Criação do Mundo”, Miguel Torga – 1.ª edição conjunta, 1984). Construído de raiz em 1936 e unindo os dois Liceus sob o nome de Liceu de D. João III, surge o edifício que se mantém contemporâneo na malha urbana, classificado como Monumento de Interesse Público em 2010 (será alvo de intervenção arquitetónica em futuro próximo e, como que em viagem ao ADN, é do Colégio das Artes – Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra – que se aguarda proposta de reabilitação por forma a manter viva a memória e com dignidade os fins para os quais foi edificado); urbe reconhecidamente irrequieta, volta a alterar o nome do Liceu em 1974, mantendo-se desde então o nome de José Falcão (Liceu de, Escola Secundária de). E que tal atravessarmos a porta principal? No interior, o átrio dá a conhecer um pouco da história da comunidade escolar nas placas comemorativas (relembramos aqui com alguma ousadia, o “vizinho” Penedo da Saudade); no exterior, as escadas “monumentais” guardam seguramente memória de várias gerações de comunidades escolares que as tiveram e têm por cenário fotográfico mas também orientam o nosso olhar para o Jardim da Rainha, a um passo, permitindo vislumbrar as várias valências do Instituto Maternal, mandado edificar por Bissaya Barreto na antiga Quinta da Rainha como parte de uma estratégia visionária de promoção da saúde materno-infantil (será interessante revisitar a biblioteca da Casa-Museu e redescobrir a obra social que o Professor pretendeu deixar como legado).
“Siga a banda!”, um café e dois dedos de conversa no incontornável Avenida, um dos históricos cafés da urbe, e detemo-nos em incaraterística porta de uma casa de fotocópias (comércio de proximidade). Como é que uma porta, absolutamente discreta e descaracterizada pode guardar tanta História! Fotografias nas paredes, uma máquina antiga que retoma funções quando o número de folhas a cortar torna obsoleto o modelo mais contemporâneo e, principalmente, o proprietário e a sua amabilidade, os episódios com que legenda a decoração da casa, a simplicidade com que partilha e desvenda alterações ao cenário urbano salpicadas por pequenos (“grandes”, “enormes”, diremos nós) episódios de vida familiar com que baliza datas.
Avenida onde morou António Portugal, um dos nomes maiores da Canção de Coimbra, e que seguramente guarda memórias únicas de tertúlias, serões mais ou menos agitados, momentos de alegria mas também de tristeza e por onde terão passado a correr, a cantar e tocar, a passear, alguns dos nomes da que reconhecemos como Geração de Ouro da Canção de Coimbra.
O postal de visita à Avenida termina (ou inicia) no cruzamento com a rua de Santa Teresa. Olhando o Carmelo, fica a promessa de continuarmos a (re)descobrir outras formas de olhar e ver os caminhos que percorremos.
Até já e… tertuliemos “coisas” boas!