23 de Abril de 2025 | Coimbra
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VASCO FRANCISCO

Setembro

10 de Setembro 2021

As nuvens vão aborrecendo o céu numa passagem refrescante, aludindo a ideia urgente de colher e guardar. O corrupio de máquinas e automóveis marca no silêncio o recomeço de rotinas entre o campo e a cidade. O movimento humano vai-se recuperando nas barbas dos meios rurais, depois de tanto tempo fechado entre portas e muros num receio agora mais calmo. As terras vão-se esvaziando para as eiras, celeiros e adegas, nessa procissão informal e cotia de recolher o fruto de um ano de trabalho e dedicação, ou simplesmente de aproveitamento do que a natureza vai oferecendo nas suas ofertas sempre generosas.

“Vinde lá chuva! Apanha que está maduro. Anda!”. De cesta de braçado vai dando ordem aos netos, que a vão prosseguindo numa colheita mais pedagógica do que necessária. O quintal está quase nu, mas a mulher por ali vai entretendo a pequenada lembrando-se do tempo em que trazia um bando de filhos atrás de si, ora a trabalhar a par com ela, ou sob a sua vigilância na alcofa de vime em que tantos se deitaram, a cesta. O mais pequeno insiste em levar a maior abóbora que encontra, quase se embrulhando com ela, com seus passitos miúdos. “Pro’ q’eu havia de estar guardada!” E dizendo-me aquilo vai-se rindo com aquele riso materno e carinhoso que transfigura o quadro a que assisto na leira ao lado. Da bordadura decorada de boas pereiras, macieiras e demais fruteiras é a figueira a que conquista mais olhares e bocas, prenha de figos, escurrentos de mel, protegidos de folhas largas e viçosas. Os pequenos tentam trepar, mas a elasticidade de tal planta logo os faz desistir e apenas pensam nos frutos e na possibilidade daquela morácea lhes servir um dia de baloiço. “Quando quiseres vinde cá apanhar!”, e dirigindo-me aquelas palavras sinónimas do espírito comunitário que em pequenos traços ainda subsiste, voltou para casa com a pequenada.

Entre silvados e terras a monte, o desprezo dos solos tenta-se inverter nas leiras amanhadas. As chapas e o plástico vão manchando a paisagem, num ferimento que se vai intensificando nas construções de desenrasque ou mesmo definitivas, degradando a identidade paisagística dos territórios. Juntam-se a elas outdoors publicitários e eleitorais, tudo isto afirma que a lei autoriza denegrir a paisagem, tornando o bucolismo cada vez mais raro.

Para além das hortas pouco mais se vê, a não ser uma terra de milho ou outra que vai escapando às digressões constantes dos javalis. A desfolhada foi feita a pouco tempo deixando os milheiros a nu, apenas com as suas espigas já doiradas que se vão acartando para as eiras e telheiros convidando a uma descamisada. Logo no campo se rouba de alguém mais velho uma catrefada de memórias, não fossem as descamisadas um dos costumes mais aguardados do ano.

É já raro o lavrador que guarda para a noite tal trabalho, onde em redor do monte de espigas apenas se assentam os da casa e pouco mais. O vinho e o licor ainda corre a roda tal com umas primeiras belhoses que já se façam. As brácteas vão-se amontoando para a gadaria e pondo a nu o grão branco que reluz vítreo e mourejado ainda aparece entre as espigas o milho rei que desperta risos e gargalhadas numa época em que são “proibidos” os beijos e os abraços. Hoje são mais conversas do que cantigas, já não há quem dance e quem toque, preferem ligar o rádio. O tempo é escasso e logo outra tarefa se avizinha, para despachar a descamisada alguém começa a jogar à dúzia e não há mãos e bicos sem destreza, no fim são todos vencedores.

Enquanto as espigas vão secando nas eiras, numa espécie de exposição da colheita, autênticos tapetes pitorescos e de cor nesse contraste de variedades, os cachos vão pedindo corte, num tarda a azáfama das vindimas fermenta nas vinhas e nas adegas.

O vento sussurra e o sol esconde-se. Com medo das chuvas mais intensas o povo que ainda agora estendeu o milho na eira já sonha com o grão na moega do moinho mais próximo, onde se transforma em alva farinha numa moagem de recordações e de expectativas de um futuro onde todas estas vivências no seu sentido mais ancestral vão caindo em desuso. No entanto resistindo enquanto houver resistentes que não desprezam o passado, homens e mulheres que evoluem respeitando, sabendo que daquele grão que tanta volta dá se há de cozer boa broa e fazer boas papas, não esquecendo o sustento do gado miúdo, o sustento cultural e identitário regional e familiar.

O tempo gira agora mais rápido, como quem abre a levada de um moinho de uma só vez. A água corre e não volta e a mó vai girando numa dança incessante como quem metaforiza as voltas dos pequenos e grandes mundos.


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