4 de Outubro de 2024 | Coimbra
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ANTÓNIO CASTELO BRANCO

Memórias da vindima

2 de Outubro 2020

Esta é a época das vindimas, um espaço temporal que sempre se destacou de todos os outros em redor da agricultura. A situação sempre foi influenciada pelas condições climatéricas suscetíveis de interferir na apanha das uvas, pois umas inesperadas intempéries podem deitar tudo a perder se a maturação estiver consumada e a colheita não ocorrer no momento preciso. E é então que vem a podridão e o abaixamento do grau e a acidez e sobretudo o desalento de quantos correram um ano inteiro para junto das suas cepas e veem agora o seu trabalho ir por água abaixo. É evidente que hoje há meios técnicos que controlam estas ocorrências desastrosas, sobretudo quando estão em causa produções de grandes adegas, mas nem sempre foi assim nas modestas casas de lavoura, onde imperava uma economia de subsistência. E o pequeno produtor via-se obrigado a vender por tuta e meia, ao negociante que lhe batia à porta, o vinho que com tanto empenho havia encanteirado meses antes nos seus tonéis. A justificação era a sua fraca qualidade e daí destinar-se à queima para ser transformado em álcool.

A pouco e pouco as pessoas foram abandonando as pequenas vinhas que herdaram e que noutros tempos sempre chegavam para o consumo da casa e, ainda que pouco, para ajudar na despesa. Mas a mão-de-obra começou a rarear, os custos dos produtos para as curas atingiram preços exorbitantes e as novas plantações tipo industrial acabaram por destronar as culturas tradicionais. Ainda assim, sobrevivem meia dúzia de famílias em cada terra que, sem fazerem contas, teimam em querer beber o seu próprio vinho. Para quem viveu naquele outro tempo em que as vindimas correspondiam a um trabalho comunitário e faziam parte das festas da aldeia, sente saudades delas. É que agora não se veem os carros de bois carregados com as dornas estrada fora e os garotos a subir até elas para irem buscar uma esgalha, não se ouvem os cinchos nas adegas a espremer o bagaço, sempre com as cuinhas de ferro a bater compassadamente, não se sente cá fora o cheiro do mosto, não se veem os homens de calças arregaçadas ou com as ceroilas de flanela a mostrar as pernas vermelhas de pisar os cachos nos lagares. E nem sequer se vê, aquando da última dornada, as raparigas de cabanejo enfiado no braço atrás do carro de bois que elas próprias haviam enfeitado com verdes, a cantarem ao desafio acompanhadas pela gaita-de-beiços do Zé Estarreja, a que se seguia a adiafa pela noite fora. E era então que as cachopas faziam um arco com os tais verdes que vieram em cima da carrada, colocando-o em seguida no portão da adega virado para a rua: a vindima estava feita!

Nota: Gostaria de dedicar este apontamento à memória dos muitos trabalhadores que têm morrido dentro dos lagares no decurso de mexer o vinho, enquanto junto o meu alerta aos que têm sido lançados sobre os cuidados a ter nesta tarefa.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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