Retomando as páginas até aqui percorridas do nosso ABC, da letra A à letra L encontramos uma ponte-gustativa que o mês de março evidencia (sim!, estamos a lembrar o arroz carolino do baixo Mondego e a lampreia) e nos convida a dar as boas-vindas à primavera em modo… piquenique. Cesta de verga, toalha aos quadrados e… que tal partilhar connosco algumas sugestões “piquenicáveis” ou vivências saboreadas, caríssimo leitor?
A caminho do 105.º aniversário deste nosso “O Despertar”, recomecemos então o nosso caminho com a letra M, de… manjar-branco, aquele doce tão peculiar que tem peito de galinha como ingrediente insuspeito em receituário doceiro e que podemos imaginar encontrar ali para os lados de S. Bartolomeu ao deparar com as palavras do nosso Camilo: “paredes meias com a loja de mercearia paterna, morava uma doceira que expunha no peitoril da janela térrea uns tabuleiros de verga com manjares-brancos e pastéis de seu fabrico”.
As pontes a revelarem-se presença assídua neste nosso receituário levam-nos de novo a associações-surpresa que nos fazem dar um passo atrás para ir mais longe: a letra L, de línguas-de-gato e de ladrilhos, colada à letra M, de marmelada, na sua versão aos quadrados; doce que continuamos a preparar no início do Outono e que, à semelhança das compotas (na “ementa” ao longo do Inverno, tornando os dias mais doces e apelando à arte de biscoitar), nos permite saborear um fruto de época durante todo o ano ao mesmo tempo que contribuímos para a sustentabilidade do planeta-casa comum reinventando a forma de o apresentar. Como alguém dizia: “quando se fala de ‘cozinha criativa’ como inovação, por vezes nem se repara que é apenas um novo conceito a dar um certo ‘sainete’, um tom de contemporaneidade, à nossa cozinha tradicional”.
À Mesa da Portugalidade marcam seguramente presença as morcelas (salgadas e, partilhando feitio mas não ingredientes, doces) e as migas, que nos servem de ponte para a letra N, de nabos e nabiças; relembramos a recente recuperação e reinterpretação de uma inusitada receita doceira longeva: a nabada.
Já que estamos em maré de doces, que tal uma nevada saboreada a olhar o Mondego sob a pérgula de Raul Lino? (palavras-cereja: mondego-barca-Tavarede-limonete… aceita uma infusão?)
Como já por aqui se escreveu, no receituário de Coimbra os petiscos são prato incontornável, daí atrevermo-nos a referir os negritos e as moelas, lado-a-lado com o pica-pau, os bolinhos de bacalhau, as azeitonas, a broa, a orelha de coentrada, o polvo ensalsado,… pratinhos vários de que se vai picando e assim alimentando conversas sem tempo, sobre tudo e coisa nenhuma, em que as discussões resultam em compromisso para novo encontro e onde o convite é…“venham mais cinco”. (escrever algumas palavras sobre as bebidas que melhor acompanham o nosso ABC da gastronomia é deixar em aberto o convite de partir à descoberta dos territórios que estão na origem da excelência à Mesa da Portugalidade, seguindo o caminho da água: da nascente à fonte, à adega e ao lagar).
A desfolhar e servir o nosso ABC da gastronomia, chegamos à letra O, de … Vida. Como?! Primavera, ovo, novo nascer,… há toda uma simbólica que também a Mesa nos convida a partilhar. Do simples ovo cozido aos ovos mexidos, do ovo estrelado ao escalfado, da omoleta simples à mais elaborada, dos fios de ovos aos ovos moles, o ovo é ingrediente central no nosso receituário, com uma transversalidade que o leva dos pratos mais simples aos mais elaborados, às propostas doces (pudins e doces de colher, bolos e biscoitos) e salgadas (cozido, salgado, salteado, no forno, assado ou naquela maionese caseira que confere à simplicidade de uma salada de batata e cenoura um toque gourmet). Para além da Mesa encontramos o ovo na imagética da língua portuguesa: “fazer omoletas sem ovos”, “sair da casca”, “galinha dos ovos de ouro”,… ou a que seguramente terá o maior simbolismo: o ovo de Páscoa, símbolo maior do milagre de uma nova Vida que começa.
E a limonada e o bolo de laranja? uma das duplas gustativas em que saboreamos a simplicidade associada à criatividade com que a arte alquímica de tirar partido da paleta de alimentos com que a Natureza nos brinda se revela manjar digno dos deuses e fonte de vitamina A, de Alegria e Amizade (“a plasticidade da língua portuguesa é um surpreendente e desafiante ativo cultural”, ouvido em modo caminhar).
Mantemos alimentada e cuidada a que poderá ser a pergunta gustativa de 2021, o ano em que Coimbra é Região Europeia da Gastronomia (“o que se come aqui?”) e o desafio de continuarmos a descobrir, em modo colaborativo, uma possível identidade gastronómica de Coimbra e Região.
Já sabe certamente, mas é sempre bom (re)lembrar: todas as terças-feira, nas redes sociais (@CCEC2027) há uma conversa em direto que nos convida a fazermos parte do caminho que levará Coimbra a Capital Europeia da Cultura em 2027 e mais além.
Até já e… tertuliemos “coisas” boas!