Regressei da guerra colonial há 50 anos, por isso é tão significativa, para mim, esta celebração do 25 de Abril. É muito tempo para quem continua vivo, é pouco tempo para quem quer esquecer os fragores dessa guerra injusta.
Na que era a casa do meu pai, aos Olivais, tenho um compartimento, que as minhas filhas apelidam, pomposamente, “Fundação”, onde guardo tudo o que constitui resquícios das memórias e das estórias da minha vida. Muitas vezes, inopinadamente, descubro relíquias que pensava já não existirem. Esta condicionante deve-se ao facto de ser muito desorganizado mas, ao invés, muito zelador como guardador de grandes e pequenos nadas.
Recentemente tive um convite de uma Escola do 1º Ciclo onde estuda, no 4º ano de escolaridade, a minha neta Lúcia, para comunicar algo às crianças sobre o 25 de Abril, principalmente, da minha experiência sobre esse dia memorável.
Para a sua preparação, dei-me ao trabalho de revisitar esse espaço mágico, na tentativa de encontrar material que pudesse entusiasmar a pequenada e incutir-lhe um pouco da importância do 25 de Abril, na construção da deles e da minha democracia e liberdade.
Encontrei uma mala velha, muito velha, que pressenti pesada. Tive receio de a abrir e de tirar tudo cá para fora. Ela podia conter, por ventura, esconder, os meus mitos, os ritos, os medos, os entusiasmos, as raivas, os desassossegos de então, enquanto jovem.
Obriguei-me a tal. Tirei quase tudo a monte cá para fora, espalhei pelo chão e verifiquei como o seu recheio estava envelhecido, amarelado pelo tempo, mas de valor incalculável. Os papéis, as imagens e as coisas agora velhas, que fui agasalhando à medida que lhes tocava, reportavam-me, com um misto de entusiasmo e melancolia, inenarráveis, à época e idade, tão jovem, de há tantos anos!
Fui encontrar o meu camuflado da guerra colonial, coçado pelas andanças de muitos quilómetros nas terríveis matas do Belenguerez na Guiné e do Maiombe em Angola. Primeiro, olhei-o indiferente, qual trapo que na altura detestava usar. Hoje, contemplei – o com benevolência e algum bem-querer.
Achei jornais e revistas diversos: o Diário de Lisboa, a Flama, a Vida Mundial, A Capital, A República, apresentando em grandes parangonas as primeiras notícias da Revolução de Abril; nas primeiras página, sempre o mesmo protagonista, Salgueiro Maia, o meu herói.
Os discos primeiros de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Padre Fanhais e muitos outros cantores de protesto estavam por lá espalhados riscados de tanto terem tocado no meu velho gira-discos. Lá estava a Grândola do Zeca e O Depois do Adeus de Paulo de Carvalho. Estas duas canções foram as senhas para a saída das tropas revolucionárias.
As canções do Ary dos Santos e do Sérgio Godinho marcavam também a sua presença…estou a viver tudo como se tudo fosse hoje. Oiçam, oiçam, como eu, a voz e a música que saem da mala, ecoam cá fora: … só há liberdade a sério quando houver, a paz, o pão, saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir… / Grândola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade… / e depois do adeus e depois do amor, e depois de nós, o adeus, o ficamos só.
A medo e sem olhar, meti mais uma vez a mão, até apalpar o fundo da mala. Agora em silêncio, arvorei o punhado, veio prestes, um livro já velhinho, mil vezes sublinhado, A Praça da Canção, edição de 1969, de Manuel Alegre e um disco datado de 26 de Abril de 1974, Caxias, Portugal Ressuscitado, com a participação de Ary dos Santos, Pedro Osório, e vozes de Grupo In-Clave, Fernando Tordo e Tonicha.
Das duas preciosidades cantei exuberante, qual menino da revolução:
(…)
Mesmo na noite mais triste,
Em tempo de servidão,
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.
(…)
[Manuel Alegre]
Depois da fome e da guerra
Da prisão e da tortura
Vi abrir-se a minha terra
Como um cravo de ternura.
(…)
[J.C. Ary dos Santos]
Não quis tirar mais nada. Os meus 81 anos estavam exaustos de memórias tão vivas, tão presentes. Não vi o que restou por lá, mas abriguei lá dentro tudo o que trouxera para fora. Voltei a fechar a mala. Fui repousá-la no lugar que lhe pertencia, até que outro a abra. O que fará com aquelas memórias? Deita-as fora? Porventura, mas elas perdurarão na vida e para além da vida, sempre, sempre, em mim.
Fui cheio de ânimo, mas preocupado, ao encontro dos meus meninos.
As crianças à volta da sala de aula levantaram os cravos vermelhos, vestiram a farda, olharam os jornais, e prometeram que serão guardiães da liberdade e da democracia para sempre
Cantei com eles, levantei a bengala e senti-me, quase miúdo como eles o são.