15 de Junho de 2025 | Coimbra
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À conversa com Isabel Silvestre: a voz da tradição de Manhouce

19 de Julho 2024

Aos 83 anos, Isabel Silvestre, carinhosamente conhecida como a professora da Benta, mantém a vitalidade de uma jovem. Nascida e criada na freguesia de Manhouce, no concelho de S. Pedro do Sul, não apenas conserva uma invejável força de vontade, mas também continua a traçar planos. Profundamente dedicada às tradições da sua aldeia natal, a nossa adorável interlocutora, que é a voz principal das Vozes de Manhouce, percorreu o mundo ao lado de artistas renomados como Rão Kyao, Rui Reininho e Vitorino.

Atualmente, o ‘rouxinol de Manhouce’, como é apelidada por muitos, está empenhada numa missão cultural significativa: transformar o Canto a Vozes de Mulheres, uma tradição vocal polifónica a três ou mais vozes, em Património Cultural Imaterial. Este estilo de canto é considerado um dos mais raros e únicos da Europa, e a nossa interveniente quer garantir o seu reconhecimento e preservação.

 

“Cresci num ambiente onde todos, incluindo os trabalhadores, eram parte da família”

Com um sorriso contagiante, Isabel Silvestre deu início à conversa compartilhando memórias da sua infância e da Casa da Benta. “Nasci há 83 anos, numa casa grande, rodeada por uma família de 14 pessoas – pai, mãe, cinco filhos, três tias e vários sobrinhos que foram chegando”. “A primeira mulher do meu avô era a Benta, e o nome ficou: Casa da Benta” – relembrou.

A entrevistada destacou a importância do ambiente familiar em que cresceu: “Sabe, cresci num ambiente onde todos, incluindo os trabalhadores, eram parte da família”.

Lembrou-se igualmente do professor Hermano Saraiva que ao passar pelas escadas de sua casa disse: “‘estas pedras estão carregadas de ternura’. Achei tão bonito que escrevi isso numa pedra”, contou, emocionada. A professora da Benta revelou que já narrou essa história várias vezes, dada a profundidade e o carinho que estas palavras representam.

 

“Ser professora primária foi uma das maiores alegrias da minha vida”

A cantora é uma voz que ressoa em todos os cantos do mundo. O seu talento musical é amplamente reconhecido, mas sua história vai além das melodias que encantam plateias. Isabel Silvestre seguiu seus estudos no ensino secundário em S. Pedro do Sul e mais tarde fez o magistério primário em Viseu. Foi professora primária em várias localidades e em Manhouce também. “Ser professora primária foi uma das maiores alegrias da minha vida. Adorava ter os pequeninos logo na primeira fase de ensino. Era uma oportunidade de moldar aquelas mentes fresquinhas, à nossa maneira”. “Lembro-me de que muitas vezes planeava as aulas, mas bastava pousar um pássaro na janela, por exemplo, e mudava tudo. Transformávamos aquilo numa festa e numa aula sobre a natureza. As minhas aulas nunca eram iguais e isso era mesmo muito bom”, relembra Isabel Silvestre com um sorriso nostálgico, mas feliz por tudo o que viveu e proporcionou.

 

Um berço de melodias e tradições

Em Manhouce, as melodias não são apenas ouvidas, mas vividas. A comunidade mantém viva uma tradição musical que fortalece laços e sustenta a alma, perpetuando uma herança cultural que atravessa gerações.

Aqui, as crianças crescem embaladas pelas canções de suas mães, absorvendo as melodias que fazem parte do seu quotidiano. “Quem nasce em Manhouce, mesmo que não queira, acaba por aprender a cantar. É como se fosse um carimbo feito à nascença”, observa Isabel Silvestre, que é um reflexo da rica tradição musical de Manhouce.

 

“A música aqui é parte da nossa identidade”

De professora dedicada, transformou-se numa cantora de renome, guiada pela força das tradições da sua terra natal. “A música chamou-me”, confessa, referindo-se ao momento decisivo após lecionar por duas décadas. “Eu viajava muito e isso interferia nas aulas. O diretor da escola sugeriu que me dedicasse mais à música, porque havia mais quem desse aulas, mas cantar não [risos]. Foi quando comecei a fazer recolhas para o cancioneiro e escrevi o livro ‘Memória de um Povo’”.

Para a artista, a música sempre foi “uma forma de manter vivas as tradições e a cultura da nossa aldeia”, destacando a importância da continuidade dessa herança.

Segundo Isabel Silvestre, a musicalidade em Manhouce é predominantemente uma expressão feminina. “As mulheres de Manhouce sempre cantaram, quer fosse no campo, para adormecer os filhos e para expressar as suas alegrias ou tristezas. No trabalho, como nas sachas e ceifas, formávamos cânticos polifónicos intuitivamente. Era uma forma de nos fortalecer e de sobreviver às dificuldades do dia-a-dia. A música aqui é parte da nossa identidade”, explica.

 

Manter viva a essência autêntica da região

Quanto ao futuro das tradições de Manhouce, Isabel Silvestre tem uma visão muito clara. “Tenho muito orgulho em passar o testemunho ao Grupo de Vozes de Manhouce, que inclui meninas jovens”. “Estou também muito empenhada na candidatura do Canto a Três Vozes Feminino a Património Imaterial Cultural da Humanidade” – disse a artista, que falou ainda de outro sonho, a construção de um pequeno anfiteatro ao ar livre no cimo da aldeia, que já está em andamento. “É um projeto pessoal que muito me orgulha e que quero deixar às minhas gentes” – apontou.

Ser de Manhouce, segundo Isabel Silvestre, “é um privilégio que implica pertencer a uma comunidade onde a natureza, o homem e a fé permanecem em perfeita sintonia”. “Os habitantes desta terra desfrutam da sorte de viver em um lugar onde a cultura e a convivência ainda se encontram intimamente ligadas”.

Em Manhouce, “as pessoas têm um apreço profundo pela natureza e pela herança legada pelos seus antepassados. Este legado impõe a responsabilidade de preservar e promover essa riqueza, incentivando as novas gerações a conhecerem e manterem viva a essência autêntica da região” – concluiu Isabel Silvestre.

 

 


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