19 de Junho de 2025 | Coimbra
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Orlando Fernandes

SEMANA A SEMANA: O PS ALIMENTA O CHEGA

5 de Maio 2023

Já se sabia que André Ventura pode ser tóxico para a democracia. Mas, esta semana, o líder do Chega demonstrou, mais uma vez, como não tem limites no aproveitamento dos acontecimentos sociais para atingir os seus objectivos de crescimento eleitoral. Na terça-feira, no Centro Ismailita, em Lisboa, um refugiado afegão perpetrou um ataque e matou à facada duas mulheres. Perante o cuidado com que as autoridades de segurança investigaram desde o primeiro momento o ataque, as reacções políticas foram cautelosas e cuidadas. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro, António Costa, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, e a ministra-adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendonça Mendes, foram reagindo com bom senso e moderação. O mesmo comportamento foi assumido pela           generalidade dos partidos parlamentares, à excepção do Chega.

André Ventura “espraiou-se” na “cama da xenofobia”, como escreveu Manuel Carvalho, em editorial no jornal Público, e usou o Twitter e uma declaração aos jornalistas nos Passos Perdidos da Assembleia da República para fazer declarações abjectas. Num acesso desbragado de demagogia e populismo de extrema-direita, André Ventura distorceu a realidade, falando sobre um crime cometido por um refugido, para atacar as políticas de acolhimento de refugiados e de imigrantes em vigor em Portugal, para explorar politicamente o ataque e acusar da responsabilidade deste crime o “Governo de António Costa”.

O recurso a declarações demagógicas e populistas de extrema-direita, que enformam a mais que explícita xenofobia, não são uma novidade da parte de André Ventura. Foi aliás, com declarações xenófobas sobre a comunidade cigana em Portugal que ele se fez notar na campanha para as eleições autárquicas de 2017, como candidato do PSD, em Loures, e foi com o mesmo tipo de discurso que criou e tem feito crescer eleitoralmente o Chega. Daí que, por mais abjectas que tenham sido as declarações de André Ventura, na terça-feira, elas chocam, sobretudo, por o líder do Chega ter subido um degrau da instrumentalização política, ao aproveitar um ataque criminoso que matou duas mulheres.

E se a espiral demagógica e populista de extrema-direita em que André Ventura entrou é uma opção do próprio e claramente usada como forma de afirmação política, temos, porém de nos questionar sobre a forma como os partidos democráticos portugueses têm lidado com este protagonista político radical, que não esconde, antes proclama, os seus objetivos e propósitos anti – regime democrático.

Tem sido questionado – e Manuel Carvalho voltou a fazê-lo no editorial sobre este caso – a falta de clareza e a hesitação que o presidente do PSD, Luís Montenegro, tem demonstrado na sua ambígua atitude perante o Chega. Um comportamento eminentemente táctico, de quem evita clarificar a separação de águas, com os olhos postos em eventuais acordos pós-eleitorais não só nas regionais da Madeira, este ano, e nas regionais dos Açores, em 2024, mas também com os olhos postos nas legislativas de 2026.

Mesmo considerando o tacticismo de Luís Montenegro em relação ao Chega, não deixa de ser de lamentar que o líder do PSD continue a atirar para um momento pré-legislativas qualquer clarificação – ainda que garantindo que não vai “pactuar com partidos anti- Europa, anti- NATO, pró- Rússia ou partidos que tenham políticas xenófobas racistas” -, como fez, a 23 de Fevereiro, na entrevista ao programa Negócios da Semana, da SIC Notícias. No congresso do PSD da sua consagração como presidente do partido, em Julho de 2022, prometeu mesmo, como salientou então Ana Sá Lopes, que não seria chefe de um Governo que resultasse de um entendimento com um partido que ponha em causa os princípios do PSD, afirmando: “É por sermos moderados que não somos nem populistas nem ultraliberais. E muito menos nos associaremos algum dia a qualquer política xenófoba ou racista.”

Por muito que seja questionável a atitude tacticista de Luís Montenegro perante André Ventura, não é menos questionável a atitude de complacência para com o líder do Chega assumida pelo primeiro-ministro o líder do PS, António Costa, e pelo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva. Esta semana, apenas a ministra-adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendonça Mendes, se demarcou de forma directa e frontal das declarações de André Ventura sobre o ataque no Centro Ismailita.

Ana Catarina Mendonça Mendes fê-lo em artigo de opinião depois de, na quarta-feira, ter escrito no Facebook: “Fazer do ódio uma forma de estar na política e na vida é deplorável. Insistir em misturar tudo, com um discurso racista e nada humanista, é instigar sentimentos que não têm lugar no século XXI. Recuso-me a deixar a extrema-direita portuguesa a falar sozinha, apelando a instintos primários, num caso que é por si um acto hediondo, mas que não tem relação com políticas humanitárias de acolhimento de pessoas que perderam tudo. Há valores que são inegociáveis!”

Na campanha eleitoral de 2022, em debate com André Ventura, António Costa inaugurou uma atitude de demarcação firme, ao afirmar: “O senhor fala, fala, fala. Comigo não passa.” Todavia, António Costa tem tido um relacionamento político e parlamentar de complacência para com o líder do Chega. Basta lembrar o debate parlamentar em 22 de Março, em que André Ventura teve o topete de, em pleno hemiciclo de São Bento, se dirigir a António Costa declarando que falava “ de líder da oposição para primeiro-ministro”. Perante o absurdo, António Costa limitou-se a rir e não o soube pôr no seu lugar, nem assumir a gravitas a que obriga o cargo de primeiro-ministro.

O mesmo comportamento complacente foi, esta semana, assumido pelo presidente da Assembleia da República, durante o debate sobre o IVA zero no cabaz alimentar. Perante um protesto regimental e André Ventura, Augusto Santos Silva decidiu usar da palavra para, com um sorriso nos lábios, lembrar que “ um dos mais famosos sermões” de Buda “foi um sermão em que ele estava calado, contemplando uma flor”, e rematar: “O senhor deputado também se poderia inspirar.” O que permitiu que André Ventura fizesse mais uma das suas proclamações: “Eu nunca ficarei calado, enquanto os portugueses lá fora estiverem a sofrer.”

Será mesmo necessária tanta complacência? Tem sido defendido por vários comentadores que o primeiro-ministro age assim por considerar que polemizar com o líder do Chega é uma forma de isolar e desgastar o PSD. Também há quem explique que o presidente da Assembleia da República o faz por pensar que esta é a melhor via para criar visibilidade pública para ser candidato a Presidente da República.

Mas será avisado António Costa e Santos Silva tratarem e servirem-se de André Ventura como se ele fosse o bobo da corte? Não deviam antes tratá-lo como potencial carrasco do regime democrático?

 


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