Na discussão sobre como lidar com as repercussões em Portugal da ascensão da nova direita radical no Ocidente, nunca percebi bem a utilidade do exercício de equivalência entre o Chega e a extrema-esquerda, em especial o PCP.
Não que haja qualquer dúvida sobre a natureza do PCP. Ela aí está, em toda a sua ostensibilidade e obscenidade, o alinhamento com a propaganda de Putin sobre a Ucrânia. O PCP é um partido moralmente defunto, cúmplice de alguns dos piores regimes do passado e do presente, que jamais abandonou a sua afeição ao totalitarismo.
Também não esqueço a falácia sob a qual o PS quis que vivêssemos desde 2015 quando por puro oportunismo resolveu inventar que o regime democrático português estava dividido em dois blocos estanques, com uma fronteira fundamental entre o PS e o PSD. Foi uma mentira, como a realidade trata de revelar a cada dia. Segundo o parâmetro dos nossos valores civilizacionais – e segundo a visão que Portugal, em nome desses valores, tem, da sua inserção na ordem mundial -, aquela fronteira foi sempre entre a extrema-esquerda, de um lado, e o PS e direita democrática, do outro.
Aliás, havia de ser bonito assistir ao PS a negociar neste momento um acordo de viabilização do Governo com o PCP, ao mesmo tempo que os dirigentes comunistas andavam a derramar o produto da sua alucinação anti -Ucrânia em comunicados, discursos no Parlamento e textos nas redes sociais.
Não é, portanto a natureza do PCP que está em causa. A razão da minha perplexidade é outra. É ter visto tantas pessoas, que achara aceitável o entendimento do PS com o PCP (e o BE), a passarem da noite para o dia aceitá-la como normal, só para poderem defender um entendimento da direita democrática com o Chega. Porque é que antes denunciavam o oportunismo do PS, quando se aliou a uma força que está fora dos limites da democracia liberal, e de repente passaram eles mesmos a desejar aliar-se com um partido do grupo populistas iliberais europeus? Das duas, uma ou porque são culpados do mesmo oportunismo ou porque acreditam naquilo em que o Chega acredita.
Sempre achei que o sentido útil da comparação seria o oposto: se não aceitamos o PCP, também não aceitamos o Chega. Pronto final. Trata-se de uma questão de coerência intelectual, mas também de legitimidade: só quem se opõe ao Chega tem credibilidade para se opor ao PCP, assim como só quem se opõe ao PCP tem credibilidade para se opor ao Chega.
Da minha parte, não estou para combater a extrema-esquerda enquanto aceito um partido que, só para me ficar pelo tema da política externa da Rússia, faz declarações piedosas sobre a Ucrânia mas tem um vice-presidente (Tânger Correia) para quem a culpa da invasão é da própria Ucrânia, que provocou Moscovo ao querer aderir à NATO (a mesma argumentação do PCP, da propaganda russa e dos fantoches de Trump nos media americanos).
A condescendência de que o PCP tem beneficiado explica-se, em boa parte por o eleitorado o ver como um partido inofensivo, possivelmente moribundo ou em fase de absorção pelo sistema. O Chega, pelo contrário, é olhado como um, partido ainda em fase de afirmação e confrontação com o sistema. O que as pessoas viram nos últimos, anos não foi o tradicional PCP revolucionário, que faz política com os sindicatos na rua, quer nacionalizar tudo o que mexe e tirar Portugal da NATO. Foi antes um partido burguês e incremental, dedicado à pequena mercearia do Orçamento dentro dos constrangimentos parlamentares. Neste intervalo, a real natureza dos comunistas esteve escondida.
Tudo mudou com a crise na Ucrânia. Ao colocar-se do lado de uma agressão imperialista, autoritária e xenófoba, o PCP aproveito para revelar novamente a que, andava distraído, de que matéria é feito. Com isso, transformou-se de facto no maior normalizador do Chega. Como evitar agora que mais pessoas passem a achar que, mal por mal se aceitamos um desses partidos, então também podemos aceitar o outro? Só há uma resposta: quem quiser rejeitar o Chega tem de rejeitar o PCP. É simplista? Não, é simples.