A notícia chegou-nos logo pela manhã de ontem (19 de junho): a tia Adelaide morrera. Coimbra conhecia-a bem e a nossa gente tinha por ela um carinho especial, sobretudo a partir da altura em que, pelas páginas dos nossos jornais, tiveram conhecimento do seu percurso de vida que agora repomos: nasceu há 96 anos em Santa Marinha, uma aldeia pobre do concelho de Seia e era uma de entre os doze filhos de um casal pobre, tão pobre que o pai, quando ela tinha sete anos, a apalavrou apenas pelo comer, para vir servir.
Gente rica essa que passou a ter aquela criança como criada, que todos os dias vinha a pé de Santo António dos Olivais até à Baixa para trazer o almoço ao patrão, então gerente da Caixa Geral de Depósitos. Quando pelos dezassete anos conheceu e começou a namorar com aquele que viria a ser o seu homem e sacristão de S. Bartolomeu, arranjou trabalho numa carvoaria na rua da Moeda e depois numa funerária aonde forrava os caixões. Mas o rio fascinava-a, sobretudo quando via as mulheres ali a lavarem roupa. E falou com a tia Silvina Gata, uma das famosas lavadeiras da nossa cidade e começou a trabalhar lado a lado com ela. Casou aos dezanove anos em cerimónia presidida por Monsenhor Nunes Pereira, que sempre se manteve um verdadeiro amigo de ambos. A vida era dura, tão dura que fez de tudo para ajudar no sustento, até serventia a pedreiros. Com ele viveu na rua Corpo de Deus, onde enviuvou aos 73 anos. E continuou a trabalhar, agora com uma pequena banca no Choupalinho a vender bonecos e recordações de Coimbra. A certa altura adquiriu um daqueles carros típicos que chegaram até nós onde, na Praça 8 de Maio, assava e vendia castanhas. E quantas vezes não a vimos ali enfarruscada, a abanar o carvão, a fazer os cartuchos com folhas de jornal e a apregoar: “levem das minhas”! Os anos começaram a pesar ainda mais, as forças a faltarem e ela a ter que continuar a trabalhar. E começou a vender tremoços, sentada no varandim frente ao Café Santa Cruz. Toda a gente a conhecia, toda a gente a saudava, toda a gente tinha uma palavra de afecto com ela. E foi nesse varandim que ela apagou o bolo de aniversário quando fez 90 anos, ofertado por uma conceituada pastelaria da cidade e por um elevado número de pessoas que souberam o que ia acontecer e não faltaram. A doença abatia-se sobre ela, tendo mesmo de ser hospitalizada e algum tempo institucionalizada. Nas visitas que lhe fazíamos não mostrava medo da morte e pedia-a mesmo, pois queria voltar para junto do seu Manuel. Na madrugada da passada sexta-feira o seu desejo concretizou-se e a tia Adelaide partiu, deixando em todos nós um sentimento de pesar e saudade que fizemos sentir à família, inexcedível no trato e cuidados que lhe proporcionaram. E tomámos a liberdade de pedir à filha que colocasse no caixão uma flor de todos nós.
António Castelo Branco