Por José Simão
Esta história é verídica só tem ligação a Santa Clara porque nesta freguesia há duas capelas de N. S. da Conceição, minha madrinha de batismo.
Numa disputa familiar entre a minha mãe e o meu avô, fui entregue ao Estado enquanto não era resolvida a situação. Mal entrei na tutoria do Porto deixei de ter nome e passei a ser o 36, também apelidado de N. S. dos Remédios, pois tinha os calcanhares cheios de feridas causadas pelas botas cardadas que eram muito maiores que os meus pés. A vida nessa tutoria era de violência extrema, todos os dias éramos espancados logo pela manhã. Os guardas divertiam-se a organizar lutas entre os internados com regras simples, “não vale agarrar, nem dar pontapés” depois valia tudo. Ao fim de algum tempo já ninguém sentia dor. Por opção familiar o 36 não tinha sido batizado. Um dia o diretor mandou o guarda Veloso à Igreja de Cedofeita para o padre batizar o 36. Era o guarda da minha camarata, que com um sarrafo na mão massacrava o rabo dos internados, que de pano na mão punham o chão da camarata a brilhar, numa ordem unida de esquerda direita, todos para o mesmo lado e ao mesmo tempo, e ai de quem desalinhasse. Oito levantavam camas e 16 enceravam o dormitório, estes de joelhos comandados pelo guarda Veloso. Chegou o dia do batismo e lá fomos rumo à igreja, o 36 fardado e em passo de marcha, com o guarda Veloso atrás. A distância era grande e eram muitos os curiosos a observar a marcha de um só. Chegados à igreja de Cedofeita, o guarda disse ao padre ao que ia e o padre perguntou pelos padrinhos. Responde o guarda: o Diretor não mandou mais ninguém. Então o padre diz ao 36 para escolher um santo. O 36 olhou, olhou e escolheu uma santa que estava rodeada de meninos, era a N.S. da Conceição. Virando-se para o 36 o padre disse “a partir de hoje a N. S. da Conceição é a tua madrinha para sempre” e virando-se para o guarda Veloso disse que teria de ser ele o padrinho porque ninguém pode ter dois santos como padrinhos. De nariz torcido o guarda aceitou, para não fazer a mesma viagem de regresso à tutória e voltar. Já batizado pensei “já estou safo, livrei-me da tareia diária”. Vou tratá-lo como padrinho? O 36 não teve coragem, mas na manhã seguinte ia tratar o guarda Veloso como padrinho. E no dia seguinte cheio de coragem virou-se para o guarda e disse: “bom dia padrinho” a resposta foi rápida, um atesto de pancada com gritos de “vai chamar padrinho a quem te fez”. Hoje é o contrário quem iria preso era o guarda.
Poderá também ouvir as Estórias de Santa Clara contadas por José Simão, presidente da União de Freguesias de Santa Clara e Castelo Viegas, às sextas feiras no programa da manhã da Rádio Regional do Centro (96.2 FM), entre as 7h00 e as 8h00. www.radioregionalcentro.com