16 de Outubro de 2024 | Coimbra
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Ali pelos lados do Ingote: gente que vai, ficando

9 de Outubro 2020

Por Lino Vinhal

Não será o Ingote o espaço turístico mais atraente da nossa Coimbra. Talvez não seja até o mais pacífico dos bairros. Mas é o Ingote, inteiro no que tem e no que não tem. É capaz de andarem por lá algumas pessoas civicamente menos exigentes. Não dizemos que não. Mas também lá há gente cuidada, de respeito e educada. A isso dizemos inequivocamente que sim. Pobres? Claro. Mas estávamos à espera de quê? Que as Madonas arrendassem por lá umas águas-furtadas?

Deixem-me ser hoje egoísta e recordar aqui três deserdados da sorte para quem o Ingote era a sua terra de eleição.

O Miguel da bola de Berlim

O primeiro era um jovem mudo, nome Miguel, sérios problemas a todos os títulos. Filho de mãe cigana e de pai não cigano, passou anos, de manhã à noite, na Rua da Sofia, repartindo sentado com a mãe na soleira de uma das portas, sempre a mesma. As pessoas passavam e davam alguma coisa. Ou não davam. Ninguém se metia com ninguém. O pai, na zona da Praça 8 de Maio, cumpria as funções de um dos últimos engraxadores de Coimbra.

O puto era muito gordo. Exageradamente gordo e revelava a olho nu distúrbios glandulares/alimentares.

O Dr. Jorge Gouveia Monteiro, então vereador, conheceu muito bem esta família que tentou ajudar, e muito ajudou dentro da relatividade da situação. Quis o destino que eu e o puto nos fizéssemos amigos, comunicando por palavras, sons e gestos que sempre davam para entender qualquer coisa.

Habituou-se a ter direito ao mata-bicho matinal. Religiosamente entregava a moeda à mãe, sempre educada, sempre a dar-me recados para dizer ao Gouveia Monteiro mais isto, mais aquilo e aqueloutro. A certa altura o miúdo fez cara feia à moeda – e tinha razão – e por gestos quis ver as que haviam ficado na minha palma da mão, já fechada. Que não, que não eram aquelas. Estranhando a mudança de hábitos, não apreciei a recusa. Estupidamente meio revoltado, puxo de uma moeda de cinco escudos (era ainda nesse tempo) e dou-lhos. Recusou. Mau. Queria mais? O que se passava? Volto ao bolso e tiro mais duas ou três moedas que lá haviam ficado ainda. Junto-as às outras e de mão aberta mostro-lhas. Os olhos riram-se-lhe e com ligeireza pegou na moeda de dez tostões. Pegou no braço da mãe, puxando-a para que se levantasse e o acompanhasse. E lá foram, e eu fui também porque nesse sentido me dirigia, Sofia além. Mas já agora, perguntei à mãe, o que se passa? Já vai ver, disse-me ao entrar na pastelaria Império, de boa memória e melhor gente. Lesto na direção do balcão dos bolos, a funcionária veio e entrega-lhe uma robusta bola-de-berlim, cujos volume e creme fizeram regalar os olhos do puto. Entendi. Aquela moeda era o quanto a pastelaria lhe levava por aquele bolo que custava um pouco mais. E ele sabia, e eu não, que aquela, e só aquela, era a moeda que dava direito ao pastel que queria.

De morte anunciada – trissomia 21 é assim –, mãe envelhecida e pai às voltas com a doença, ela voltou anos depois para os seus, lá em cima, no Ingote, e fez do muro marginal à estrada a sala de estar, dias inteiros. Por ali continuámos uma amizade com intervalos a mais, até que vejo a mãe sozinha um dia. Parei. Então? O meu menino morreu e enterrou-se ontem, disse-me. Voltei ao carro. E fui. Mas não foi ainda a mágoa daquele momento, velho de anos, de dor fresquinho ainda.

Que saudades da Carolina

O segundo caso é conhecido por toda a equipa que comigo colabora há anos. A Carolina, outra herdeira da miséria, morava por ali, onde o Monte Formoso se acaba e o Ingote/Bairro da Rosa se inicia. O barraco, casa noutros tempos, fora a solução que preferiu a outras soluções aparentemente melhores, menos para ela. Soluções que, outra vez Jorge Gouveia Monteiro, o homem que ainda hoje aquela gente recorda com carinho, lhe ia arranjando e a Carolina recusava. Que não, que não gostava daquele T0 e T1 ou T qualquer coisa. Daquele também não. Daquele muito menos.

Mas não gosta deste tão jeitoso porquê? Não gosto. Os vasos da vizinha da varanda de cima deixam-me cair água na cabeça quando ela os rega.

Ensacou tudo, saco dentro de saco, para que dentro do saco outro saco coubesse. E foi-se monte além, a pé obviamente, instalou tenda de plásticos atados uns aos outros, num terreno a monte, mesmo ao lado do Armazém da Matobra, com cujos gerentes e trabalhadores se fez conhecida, amiga e acarinhada. Dezenas de sacos de lixo em semicírculo tornavam o “interior” aconchegante e quentinho. Mas se mais sacos não houvesse, os muitos cães vadios que ali se juntavam faziam o resto, afagando o ambiente que também para eles se tornara agradável.

Por ali viveu a Carolina uns tempos. Um dia o imobiliário chegou e veio tomar conta daquele espaço. Carolina ensacou de novo o muito que não tinha, atou-os uns aos outros e fez o caminho de regresso. Meteu-se debaixo de telha, lá em cima onde o Monte Formoso se finda e por ali se manteve uns tempos, entre gatos, cães, lixo e fome. Não pedia, mas queixava-se da vida. Não pedia mas aceitava. Entre as gentes da Matobra – perguntem ao engenheiro José Carlos Martins – e outros, criou a expectativa de um dízimo que, ficando aquém, ia além do que a vida lhe havia destinado. A casa, assim chamada, era lixo por todo o lado. A Câmara, ou alguém por ela, foi lá várias vezes limpar tanto esterco. Mas a Carolina dizia-se feliz ali. Sorria, aceitava brincar com brejeirice. Também nos fizemos amigos. Às quintas-feiras, transpunha, a pé, os quilómetros que nos separavam, vinha ao escritório como se em trabalho, na sua luta pela subsistência, mas os olhitos riam-se-lhe quando uma colega mais sensível lhe trazia a “bica” que ela ingeria em goles de satisfação. E regressava, aconchegando na saia o pouco que conseguira.

A Segurança Social tentou várias vezes melhorar-lhe a condição, alterando no possível as circunstâncias. Mas não era isso que a Carolina queria. Habituara-se tanto a ser pobre que ter outra coisa, por companhia, que não fosse a miséria, lhe alterava os ânimos.

Um dia a Segurança Social disse que tinha que ser. Viver assim não. Instalou-a algures, num concelho vizinho, numa instituição que a tratou bem. Muito bem. Lavou-a, devolvendo-lhe a sua pele de origem; cortou-lhe o cabelo; penteou-a; deu-lhe comida boa e saudável. Mas a Carolina chorou muito nos primeiros dias, diziam-nos lá de dentro. Mas foi-se habituando, aconchegando o estômago nunca habituado a bons tratos. Faces mais rosadas, já sorria. Num fim de tarde, meses depois, não era tarde mas era fim. A morte veio buscá-la, levando a Carolina, agora quase senhora, que fora mais feliz entre cães vadios e sacos de lixo. Ainda hoje a memória de Carolina nos traz, a muitos de nós, laivos de uma saudade enorme.

Agora até o Chico

E chegamos ao Chico. Ingote outra vez, imediações, que fossem. Estávamos em 1974 e a Revolução tinha acontecido há meses, muito poucos. Os transportes públicos de Coimbra não iam ainda para além da cidade em si e o Monte Formoso era lá longe, não mais que um bairro periférico. Ou se ia de carro ou a pé. Com carro não havia muita gente. A pé, ir e voltar, sobretudo se carregado do mercado, era puxado. Aquela malta começou a reunir-se pela calada e a preparar o desvio de um autocarro que passasse a servir aquele local. O grupo de operacionais entrou um dia na Baixa. Dirigiram-se ao motorista e disseram-lhe: vamos para ali para o Monte Formoso. O quê? Não vou não. Sou responsável por este veículo e ele vai fazer a viagem marcada. Ouça bem: você leva o autocarro para o Monte Formoso. Não levo não. Leva, leva. E levou. Parou no largo a meio do Bairro e ali ficou até que os “desviantes”, através de um outro grupo de “dialogantes” com as autoridades, resolvesse a questão. Que era, para eles, muito simples: ou os SMC criavam uma carreira diária para Monte Formoso ou o autocarro não saía dali. Era responsável dos transportes o engenheiro Octávio Lopes, vereador da Comissão Administrativa que se seguiu ao 25 de Abril. Deu voltas de cão, entalado entre as possibilidades que dizia não ter, o desaforo feito desafio às autoridades e a sua formação de homem de esquerda que na altura dava razão a tudo quanto fosse reclamação do povo. Sai, não sai, o autocarro ficou lá três dias parado e o Diário de Coimbra acompanhou o assunto – novidade grande na altura – por meu intermédio e pelo meu colega José Santos, que dali levou as primeiras fotografias alguma vez feitas internamente pelo Diário de Coimbra até então. Ele está aí, vivo e saudável, para atestar a veracidade da história.

Passaram-se anos. Muitos. Vinte, trinta talvez. Entro um dia no supermercado do Monte Formoso, a “loja do senhor João” e alguém já envelhecido, gasto, rosto rompido pelos anos e pelo trabalho, vem ter comigo e apresenta-se: não me conhece? Não. Sou fulano. Não me recordo. Eu fazia parte do grupo que desviou em 1974 o autocarro para Monte Formoso e você ia lá todos os dias enquanto o carro lá esteve. Você falava muito comigo e era eu um dos porta-vozes do grupo (eram todos). Oh, que prazer, muito obrigado… Aquela coisa do costume, tipo saudação cá entre nós, numa conversa fútil mas muito agradável.

Ficámos amigos e passei a ser cliente da loja do senhor João, pela qualidade dos produtos que ainda hoje se mantêm, é verdade – loja, qualidade e senhor João – mas também porque gostava de estar com o Chico – assim se chamava – com quem tinha conversas banais – poucas – e brejeirices – muitas.

Não havendo muito assunto de conversa entre nós, passámos a glosar com a política, de que ele gostava e tinha alguma informação vinda dos noticiários que ouvia e dos Jornais que ia desfolhando na loja. Conhecia, de nome obviamente, os líderes políticos portugueses e internacionais. Gostava da Merkel, mulher que os tinha, dizia ele, sem eu fazer ideia ao que se referia. O Chico, amigo do peito do João, tornou-se seu companheiro e ajudava-o nas noites em que se iam abastecer ao Mercado Abastecedor. Entre ajudas-me aqui e eu ajudo ali, fizeram-se amigos: eles os dois, nós os dois e nós os três.

Merkel era assunto obrigatório e autonomeámos-nos seus conselheiros na zona do Ingote e Monte Formoso. Feia mas tesa, dizia ele. Devia vir para cá uns tempos, acrescentava o Chico. E por aí fora, semanas, meses e anos a fio.

Última conversa, há dias, ele para mim: está cá no próximo fim-de-semana? Em princípio sim, respondi. Temos que ir a Berlim. Alguma urgência? Perguntei. Ela telefonou-me. Então temos que ir, para nos chamar deve ser importante, adiantei. Muito importante diz-me o Chico. Ela está a ensacar os milhões daquela coisa, está a ver os milhões que creio lhe chamam Fundos de Recuperação ou coisa parecida, e quer a nossa opinião. É simples Chico, que mande, mas vamos quando? No domingo temos um “rápido” às 6 da manhã e vamos nesse. Mas o que é que ela quererá? Perguntei de novo. Quer duas coisas, explica o Chico. Quer saber se os 120 milhões de euros por semana, durante dez anos, chegam e quer ter a certeza que o pessoal aqui da zona vai receber algum. Ela sabe que o nosso país não é muito bom a fazer contas e quer que a gente tome conta disso. Oh Chico mas você depois controla a coisa? Controlo como? Vai tudo lá para baixo e a gente aqui, você já sabe como é. Fica a ver navios. Entraram clientes e a coisa ficou por aqui.

Era quarta ou quinta-feira. Não voltei a ver o Chico. Na segunda, vou à loja e pergunto, em rotina: o Chico ainda não veio? Ele anda bom?

Não veio nem vem. Como? Perguntei. Sim, não vem. Está lá em baixo amarrado ao poste. Passou-me pela cabeça a possibilidade de um acidente mas recusei a ideia, tanto mais que o Chico não tinha carro. Mas podia ir com alguém e, incrédulo, saí e espreitei o poste. Sim, estava lá uma comunicação fúnebre. Mas de longe, não dava para ver. Fui. Meio a medo, como se algo me empurrasse para a frente e me puxasse para trás. Era o Chico. Ali, todo garboso numa foto tirada há muitos anos. Garboso, mas ali. A dizer-nos que tinha partido. De repente, ou quase, soube depois.

Pronto. Eu calo-me. Sei que a vida é assim. Sofrida. A morte também. Traiçoeira. Mas por cada um de nós, só um deveria morrer. E o que a vida me vai ensinando é que muitos, muita gente que conheci, provavelmente todos afinal, morre um, e qualquer coisa. Morre ele e leva de nós a tal qualquer coisa que às vezes nos causa uma dor enorme. Morre também um pouquinho de nós.

Que os três – porque agora é dos três que falamos – o Miguel, a Carolina e o Chico – agora – sejam mais felizes lá onde estiverem, já que aqui onde viveram o não foram.


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