30 de Novembro de 2023 | Coimbra
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Orlando Fernandes

A ORBANIZAÇÃO DE FRANÇA

22 de Abril 2022

Na primeira volta das presidenciais francesas metade dos eleitores votou em candidatos pró-Putin ou em adeptos de um não alinhamento com a Ucrânia, o que na prática vai dar ao mesmo. Um deles, Marine Le Pen, passou à segunda volta com o resultado mais expressivo alguma vez obtido e com condições de competitividade nunca antes reunidas. À entrada para os 15 dias finais da campanha, o intervalo de distância para Macron é suficientemente curto para fazer soar o alarme em Paris e com todas as capitais da União Europeia, com exceção de Budapeste. O cenário de orbanização de França, com Le Pen no Eliseu, existe e deve ser considerado por todos os decisores políticos europeus.

No momento de pressão das democracias pelas autocracias, com uma guerra na Ucrânia sem fim à vista e um residente russo que resiste e, pelos vistos, continua a inspirar delfins, é prudente colocarmos o pior dos desfechos em cima da mesa: França mudará radicalmente, o alinhamento com Berlim será esvaziado, Moscovo ganhará peso, Washington será alvo preferencial, na antecâmara do regresso de Trump, e soluções comunitárias para travar crises conjuntas serão alvo de retrocesso.

A certeza sobre boicotes internos na NATO vai acompanhar o sentimento de dúvida sobre as reais intenções de fazer implodir pouco a pouco a UE, alimentando com isso atitudes miméticas em partidos espalhados pelos Estados-membros, que se verão mais legitimados a fazer o mesmo caminho, fomentando um atrito perigoso em cada debate nacional.

A sensibilidade do momento europeu com duplo epicentro em Kiev e em Paris exige que, à semelhança de 2017, quem está fora perceba as implicações daquele desfecho e quem está dentro se mobilize para travar a ascensão vitoriosa da melhor amiga de Putin na Europa.

É aqui que entra a outra parte da história desta primeira volta. Há cinco anos, Macron foi eleito com o dobro dos votos de Le Pen. Beneficiou largamente do efeito novidade, da transferência de voto do centro-esquerda e do centro-direita tradicionais, da prestação no derradeiro debate televisivo, e de um misto de impreparação económica com um radicalismo identitário da parte da sua oponente, que acabaria por mobilizar eleitores suficientes para compor a frente republicana de proteção ao sistema político. À saída desta primeira volta, nenhum destes pontos é hoje replicável.

Nem Macron é novidade nem a presidencialização que imprimiu ao sistema lhe reduz a responsabilidade pelo curso destes últimos anos. Pelo contrário, Macron absorve toda a raiva incontida que percorre a sociedade francesa. Por seu lado, os dois partidos que há dez anos valia 56% dos votos, hoje valem 6%. Há cinco anos, o PS praticamente desapareceu, no último domingo evaporou-se do mapa.

Há cinco anos, o candidato dos Republicanos, François Fillon teve 20% dos votos, no último domingo a sua sucessora teve 5%. Macron não tem por isso as mesmas condições para absorver diretamente eleitores desses partidos quando estes, na prática, dispersaram o voto ou abstiveram-se. O apelo ao voto em Macrom feito por Anne Hidalgo e Valérie Pécresse não produz o mesmo efeito de 2017.

Mas o elemento mais diferenciador nesta campanha talvez esteja no foco escolhido por Le Pen, não tão assente no binómio imigração/insegurança ou em ruturas na moeda única, mas naquilo que 85% dos franceses considera prioritário resolver: o aumento brutal do custo de vida e o acesso à saúde, expostos pela pandemia e pela guerra na Ucrânia. Este alinhamento pragmático com novos eleitores diz-nos que Le Pen estará mais preparada se for confrontada por Macron sobre economia, energia, impostos ou mesmo, a gestão da relação com a Rússia, o que também reduz o arco de surpresas que a prejudicaram há cinco anos.

Por fim, para contornar tudo isto, Macron vai ter de despir o fato presidencial e fazer a campanha da sua vida chegar aos eleitores jovens que mobilizou em 2017, muitos deles a pagar a fatura das crises sucessivas das faixas etária que esteve sobretudo com Mélenchon e Le Pen nesta primeira volta; mostrar outra sensibilidade social para chegar a setores desencantados travada a sua mobilização pela adversária a retomar o discurso aspiracional, quer de França no mundo quer sobretudo da classe média pressionada com o custo de vida.

Falta pouco para tudo isto, mas é o que Macron tem para salvar França e a Europa de caírem numa orbanização com estrondo.

 


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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