E se pudesse ajudar alguém ao mesmo tempo que contribui para o combate do desperdício alimentar? É este o espírito do movimento Refood que nasceu em Lisboa há 11 anos e hoje se encontra presente com mais de 60 núcleos em todo o país, incluindo Coimbra, e até além-fronteiras. Através desta iniciativa, a comida, que tinha certamente como destino o lixo, é resgatada e as pessoas que precisam são alimentadas. Um pequeno e grande resgate de amor que une toda a comunidade numa missão que já é global.
A Refood chegou a Coimbra há sete anos (2015). Passado um ano, o movimento cria a campanha “Pão e Bolos”, em que os voluntários fazem recolhas diárias nas pastelarias e padarias aderentes e entregam os excedentes alimentares nas diversas instituições do concelho.
O crescimento é notório, pois atualmente este movimento envolve 26 fontes de alimentos e cerca de 700 beneficiários. E se em 2016 eram apenas padarias e pastelarias, hoje também supermercados e frutarias integram o projeto com amor à causa.
“A nossa maior incidência é nas pastelarias/padarias, mas temos a intenção de aumentar os locais aderentes à iniciativa e ajudar cada vez mais pessoas”, diz uma das voluntárias do projeto, Joana Henriques, afirmando que “se até há pouco tempo os nossos parceiros eram suficientes e supriam as necessidades das instituições, agora não”, conta a voluntária.
Já a adesão por parte dos supermercados, confessa, “podia ser maior”. “Ouve-se falar em todo o mundo de acumulação de excedentes alimentares às portas dos supermercados, inclusive há pessoas que acabam por ir buscar comida aos caixotes do lixo na hora do fecho dos estabelecimentos”, desabafa em tom melancólico.
Além disso, a Refood faz ainda recolhas em eventos pontuais, onde há presença de excedentes alimentares, desde as grandes conferências, cerimónias e até nas festas estudantis, como a Queima das Fitas e a Festa das Latas.
Um trabalho extraordinário que é feito diariamente por aqueles que despendem do seu tempo livre em prol de uma causa. No total, são cerca de 90 voluntários que fazem a “ponte humana” entre quem tem uma “sobra” diária e quem tem uma necessidade.
O impacto de um pequeno gesto
Mas o movimento Refood é muito mais do que uma recolha de excedentes alimentares. É um projeto que torna a vida de alguém mais feliz, com uma simples entrega de um pão ou de um bolo que de outra forma tinha apenas um destino, o lixo. É, assim, um verdadeiro impacto que nasce através de cada ação diária e com cada alimento que é resgatado. A boa comida deixa de ser atirada para o lixo e passa a alimentar as pessoas.
Um projeto que transforma mesmo o mundo e as pessoas, pois é aqui que os cidadãos podem dar um pouco do seu tempo, talvez duas horas semanais, para mudar o dia de alguém com uma entrega de alimentos e ser também responsável pela mudança ambiental, bem como contribuir para a economia circular. No fundo, é muito simples. Cada refeição resgatada alimenta alguém necessitado e simultaneamente protege um bem precioso, o nosso meio ambiente.
Mobilizar, unir e transformar
A jornada começa com um único passo. A vontade de querer integrar o movimento Refood. A voluntária Joana Henriques e também uma das gestoras técnicas do núcleo de Coimbra é uma dessas pessoas. Em 2019 abraçou a Refood, aquando da sua chegada à cidade conimbricense. Natural de Águeda, a jovem de 30 anos assume tratar-se de um trabalho “gratificante”. “Sinto que o meu papel é importante para a sociedade”, contou ao nosso jornal.
Foi, assim, numa segunda-feira que “O Despertar” acompanhou esta voluntária num dos seus trajetos. Naquele dia, por falta de voluntários disponíveis, um dos problemas alavancados pelo núcleo conimbricense, Joana Henriques realizou duas rotas. Um pouco mais de duas horas a respirar solidariedade naquele fim de tarde e a recolher os excedentes alimentares, uns do próprio dia, outros de dias anteriores, “mas todos em condições de serem consumidos”.
“Cada uma das rotas tem cerca de quatro fontes de alimentos e passamos sempre o mais próximo possível da hora de fecho dos estabelecimentos”, explicava a voluntária enquanto se aproximava da primeira paragem, pelas 20h30, a pastelaria Tamoeiro.
Quando Joana chega já a conhecem. Às vezes, um simples “olá”, acompanhado das embalagens de recolha é o suficiente para se saber que se trata da Refood, é talvez a “imagem de marca”. O empregado ou gerente do estabelecimento coloca todos os alimentos dentro dos baldes e cuvetes, também doados por algumas entidades, e contabiliza os excedentes. No final, um “obrigada”, com a certeza de que aquele bolo ou pão vai fazer a diferença.
“É isto que nos distingue. Diminuir o desperdício e alimentar quem precisa, embora com a consciência de que ainda existe muito desperdício e muita gente a necessitar de ajuda”, constata a voluntária que é da opinião de que até os próprios estabelecimentos deviam entrar diretamente em contacto com as instituições e entregar os alimentos. “Isso seria o ideal”, reforça.
Pedidos de ajuda que aumentam a cada dia. “Desde a pandemia que tem havido um aumento de solicitações por parte das instituições e até mesmo de pessoas, que também encaminhamos para as associações que as podem apoiar”, acrescenta, dando nota de que em Coimbra “ainda existe muita pobreza envergonhada”.
A rota continua e seguem-se outras pastelarias. Pão e Sabores, Tropical, Afonso, Vale das Flores e Coimbra Doce que doam os seus alimentos com o sentimento de missão cumprida.
“Não nos custa ajudar quem mais necessita. É uma excelente iniciativa e por isso é que nos associámos há cerca de dois anos, além de que nunca sabemos se um dia vamos ser nós a precisar”, partilha a funcionária da pastelaria Afonso, Carolina Prata.
Seis pastelarias, dois destinos. Naquela segunda-feira, perto das 21h30, a rota estava concluída. É tempo de rumar às associações beneficiárias daquele dia: Integrar e AnaJovem. O sorriso de gratidão quando se abre a porta após Joana tocar a campainha é o cumprimento mais sincero que estes voluntários podem receber. Está terminada a missão, é hora de ir para casa com a certeza de que mudámos um pouco o mundo.
É preciso voluntários
É uma realidade que Coimbra é uma cidade de estudantes, pelo que ter voluntários fixos torna-se uma missão difícil. “Há uma grande rotatividade e no verão nota-se uma diminuição e isso acaba por ser um obstáculo por causa da gestão das rotas”, evidencia a voluntária, apelando à comunidade que adira à causa, pois “precisamos de voluntários que nos ajudem”.
Um sonho perto da realidade
Em Coimbra, um dos 60 núcleos existentes a nível internacional, funciona de forma um pouco diferente, uma vez que não possuí um Centro de Operações, em que as famílias beneficiárias se deslocam ao espaço e recolhem as refeições já confecionadas e completas.
“Aqui realizamos as recolhas dos excedentes alimentares e no final fazemos a entrega às instituições de forma rotativa e elas distribuem pelos seus beneficiários”, explicou.
Apesar de não haver esse contacto direto com as pessoas beneficiárias, os voluntários não ficam indiferentes ao trabalho desenvolvido. No entanto, ter um Centro de Operações é um sonho para a Refood de Coimbra.
“Temos esse grande objetivo que está a ser construído e que esperamos que esteja concluído ainda este ano”, revelou Joana.
Situado na rua do Brasil, trata-se de um espaço que vai permitir os voluntários embalarem os alimentos para que as famílias se possam deslocar diretamente ao local e recolher as refeições.
O Centro de Operações nasce também de um gesto de amor e de solidariedade. “A Fundação ADFP e a União das Freguesias de Coimbra foram as entidades que permitiram que o movimento Refood de Coimbra realizasse o sonho de ter o seu Centro, através da cedência do espaço e de ajuda monetária”, realça.
A Refood e o mundo
A ideia Refood nasceu da vontade de servir e da constatação de que uma pessoa pode realmente fazer a diferença. Esse foi o momento “relâmpago” para esta ideia, seguido da decisão de realmente fazê-lo. E a verdade é que está a ser feito e hoje são cerca de 60 núcleos existentes dentro e fora de Portugal, contabilizando mais de sete mil voluntários, sete mil beneficiários e 2.500 parceiros de fontes de alimentos.
A 9 de março de 2011, a Refood foi lançada em Lisboa por Hunter Halder, que começou a recolher a comida e a entregá-la a quem precisava à boleia de uma bicicleta com cestas à frente e atrás. Três dezenas de restaurantes e duas paróquias parceiras, numa zona de sete quarteirões no centro da cidade lisboeta abraçaram inicialmente o movimento que já pisou o território de outros países. O primeiro passo nessa jornada internacional foi concretizado no bairro de Tetuán, em Madrid. Outras equipas já estão a formar-se e a atuar em Itália, no Brasil e na Virgínia. De facto, a Refood é um movimento global, nacional e local.