13 de Junho de 2025 | Coimbra
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António Inácio Nogueira

TESTEMUNHOS: Os «tralhões» do meu contentamento

2 de Agosto 2024

Passava as férias de Verão em casa dos meus avós, numa aldeia beirã, na altura bem pobre, mas para mim, um petiz, cheia de atractivos. As vindimas o meu encanto maior; o arranque das batatas, o meu primeiro suor; a fruta comida das árvores a minha liberdade original; as melancias arrancadas ao «meloal», descidas ao poço para refrescar e, depois de fresquinhas, comidas a meias com o meu avô, em silêncio, às talhadas, (depois de o ter ajudado a «encaminhar a água»), o meu primeiro purificado contentamento. Ah se eu pudesse contar tudo…todas as memórias que hoje se enredam à minha volta…tantas, tantas outras, que volvidos 70 anos, já me parecem mitos e lendas.

E os «tralhões»? Ah, os «talhões» do meu encantamento!…

 

Nas férias de Verão, levantava-me cedo e caminhava lesto até à Tapada da Ribeira.

O meu pequeno-almoço era tomado lá, junto a uma grande figueira, comendo figos brancos bem frescos, deliciosos.

Depois do estômago confortado, a primeira coisa a fazer era encontrar «aúdes». Logo que descobria o formigueiro certo, vá de pegar no sacho e escavar para apanhar as tão desejadas formigas de asas, que eu guardava numa pequena cabaça até entrarem em acção.

Lembro-me de que os «tralhões» eram as aves mais fáceis de apresar. Para tal facto contribuíam as «aúdes», que eu considerava uma oferta de Deus aos «putos»,  com eu, expressamente para apanhar tais passarinhos. Quando não se encontravam «aúdes» caçava-se com grilos, encontrados debaixo das ramarias das batatas e dos meloais.

Depois de olhar e auscultar em volta, decidia onde colocar as armadilhas. Com o sacho dava uma cavadela de modo que a terra retirada fosse bem visível dos ramos das árvores vizinhas. Em seguida, terraplenava o montículo de solo formado, o designado «rapeiro», e armava-se o «costilo» com a formiguinha bem viva, a menear as asas transparentes, no extremo do «araminho» que prendia à ponta da mola mortífera. Depois disfarçava bem o «costilo», cobrindo-o levemente com terra. Esta armadilha estava pronta, e o cerimonial repetia-se, sucessivamente, noutros locais, até estarem montados os 12 «costilos» que eu possuía.

Após armar o último, «fazia tempo» antes de começar a «dar a volta». Por vezes, chegava-se na hora certa, e havia a oportunidade de observar o ritual da morte de um desventurado «tralhão».

Um pássaro está num galho da oliveira e observa guloso a «aúde» a reluzir, que se mexe e remexe com o calor do sol. Passados uns segundos voa para o «pincho» e aproxima-se do «rapeiro». Observa; repenica a formiga, volta a repenicar; o «costilo» desarma e o «tralhão» estrebucha. Corro ao seu encontro. É tarde, acabou de morrer. Instalo novamente a armadilha para que o ritual se repita. Volto costas e vou ver o que há nos outros «costilos». Hoje tive sorte; uns atrás de outros, os «tralhões» foram entrando no meu «arameiro».

Chegava a casa, altivo, e a minha avó perguntava: – «Quantos apanhaste?». E eu respondia orgulhoso: – «Dez».

Depois era depenar, fritar, grelhar ou fazer com arroz. Que bom!

E nos dias em que não se apanhava nada? Era um desconsolo – só passava às seis da manhã do dia seguinte, quando partia rumo à figueira grande de deleitosos figos brancos para iniciar a faina.

Tudo isto foi há setenta anos!

Hoje quase utopias na cabeça de um velho.


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