Era uma manhã serena, talvez um pouco pardacenta, quando saí de casa a caminho do Café Santa Cruz que frequentava religiosa e diariamente.
Estava sentado, numa mesa lá bem ao fundo, com o Diário de Coimbra nas mãos, lendo as últimas da urbe, quando recebi a notícia do falecimento do meu neto.
Abandonei o Café, desaforado, caminhando sem sentido; tropecei em duas cadeiras, quase caindo, e dirigi-me à paragem do autocarro. As lágrimas saíam dos meus olhos como golfadas de fel. Indignado com a vida. Entrei, o motorista perguntou-me se precisava de ajuda e a minha resposta foi seca e irascível, retorquindo que não precisava de nada nem de ninguém. Agora já não preciso de nada, tudo finou…
Saí do autocarro à entrada da maternidade, expliquei ao segurança o acontecido, mas este com ar impositivo, disse-me que não podia entrar. Empurrei-o com força contra a parede, com aquelas forças que só se arranjam nas ocasiões de muito desgosto. Entrei, subi as escadas, correndo, tendo a atrás de mim, a sonoridade de um carrasco que me quer mandar para o cadafalso. Uma enfermeira com ar meigo, protege-me e leva-me ao lugar da desgraça.
Entrei a porta, olhei para o lado direito, não querendo ver nada. Ao fundo junto à parede e velando um menino que estava metido num daqueles sarcófagos de vidro, lugar onde se salvam muitas vidas, mas aonde também se morre, o pai e a mãe, tristes, pungidos, estavam dobrados sobre o pequeno ser que havia partido há pouco tempo.
De longe pareceram-me dois velhinhos que a adversidade envelheceu novos. Cheguei, não fui capaz de balbuciar uma única palavra sequer. Nem um consolo tão-pouco. Olhei através do vidro o meu neto, estava sereno, tive a ideia de que voava como fazem os pássaros a caminho de outro cosmos. Os pássaros. Os pássaros a caminho, acarretando o meu neto.
Levantei o protetor de vidro, dei-lhe a mão, passeei-a pelo corpo ainda quente. Tive a sensação de que não queria partir. Os pássaros estavam impacientes. Afastei-os em vão. Ao menos tive a felicidade de o ver partir.
Já não tinha o meu companheiro de bola que me havia de ajudar a subir as escadas íngremes, onde tinha o meu lugar cativo. Já não tinha o tudo que agora era nada. Maldito dia 16 de fevereiro de 2013.
Regressei, pé ante pé, calcorreando a calçada. As lágrimas caíam e ainda se encontram lá disseminadas, naquele caminho de pé posto que eu abri ao passar e que jamais fechará.
Andei muito tempo para resolver escrever sobre este acontecimento amargurado. Foi hoje.
Neste último dia 15 de fevereiro, fui conversar com ele e senti que era uma voz única, a minha. Já não sei o que lhe disse, para quê, não me ouvia. Mas deixei-lhe à porta da moradia de mármore, um raminho de hera e oliveira, com uns dizeres que ele apreciou.
Nesse dia foi o fim, mas também o fim de parte da minha vida.
Tenho pena de o ver acabar assim, mas também tenho pena de mim. Uma ruína humana que já pouco existia. É verdade, já pouco existia e agora pouco vai sobrar. Quase inválido de corpo, tolhido na alma, quase sem mais nada a não ser a pena com tinta preta que te escreve. Até breve meu neto.