Hoje, entre o Estado central e o poder local, o que está em curso não é nenhuma descentralização mas um processo de transferência de encargos a que chamam competências.
Para além de enorme trapalhada, precipitação, falta de esclarecimento e discussão séria, é uma operação política, resultado de uma agenda e de um “negócio” entre o Governo minoritário do PS e o PSD, e não uma genuína intenção de valorização das autarquias locais e de defesa dos interesses das populações.
No ano em que comemoram 45 anos da Revolução de Abril, não esquecemos todos os ataques ao poder local e a sua permanente descapitalização, pelos incumprimentos sucessivos da Lei de Finanças Locais.
O tema nem sequer é inédito, foi tentado em 2007, e agora, volvida mais uma década, retomado sob a falsa ideia de que se trataria de uma descentralização. Em 2007, contrariamente ao que assistimos hoje, a luta e a Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) em congresso deitaram por terra a tramoia.
O que agora se desenha é uma apresentação mais colorida da medida que em 2014 o governo PSD/CDS desenhou no chamado Guião para a Reforma do Estado.
A defesa da autonomia do poder local e o reforço da componente participada na vida do Estado exigem uma política baseada na descentralização. Conceito que não pode ser confundido com o processo de transferência de competências ou, melhor dizendo, de encargos e responsabilidades da administração central, que nenhum governo cumpriu até hoje, não por não poder, mas por opção.
Não se nega, antes se exige, que a autonomia do poder local e o reforço da componente participada na vida do Estado colocam a necessidade de uma política baseada na descentralização.
Não se nega, à partida, a atribuição de novas competências, mas coloca-se a necessidade de uma clara, séria e transparente delimitação de responsabilidades entre os vários níveis da administração, contribuindo para elevar a eficácia da resposta e a resolução de problemas.
Nesse sentido, e perante tão profundas alterações, os órgãos e eleitos autárquicos deveriam ter exigido como necessário definir com rigor as atribuições e competências e transferir e a sua natureza, calcular os meios necessários à sua concretização, prever a sua evolução a médio prazo e as suas implicações administrativas e jurídicas.
Se os meios a transferir não corresponderem aos encargos, até porque esta lei impõe como limite o não aumento da despesa e se os recursos não derem garantias de um nível de qualidade superior àquele que hoje é alcançado, então o processo de transferência de competências não passará de um novo logro com prejuízos para a autonomia do poder local e, sobretudo, para a população, traduzindo-se, na prática, na continuidade da desresponsabilização da administração central daquilo que é a sua missão, passando o ónus para os municípios.
A ausência de coerência de todo este processo, avulsamente posto a andar numa dinâmica de leilão em disputa, deu o que tinha de dar, uma total desorientação e confusão, constatada pelos números totais finais das deliberações conhecidas – 60% cento dos municípios a aceitar e 40% a rejeitar a “competências descentralizadas”, passando por casos em que algumas aceitaram as mais “generosas” e reusaram outras.
E assim vamos andando, mas continuando a luta e o esclarecimento pois, “democraticamente”, a cumprir-se o desígnio do PS com o PSD, em 2021 todas as autarquias, obrigatoriamente, terão de aceitar os tais encargos.
É ainda preciso chamar a atenção para as manobras que pretendem iludir o iniludível: a inexistência do nível autárquico regional, constitucionalmente consagrado, conforme o artigo 236.º da Constituição refere no seu n.º 1: “No continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”. Passados 45 anos de Abril e 20 anos do referendo sobre a regionalização e depois de tanta “cara de Pau” e contorcionismo político de eleitos e responsáveis do PS e do PSD, aqui estamos – na mesma, quanto à regionalização.