Rebuscava num desses cadernos já de folhas torradas pelo tempo. Empurrando a lapiseira, como quem pede pelo amor de Deus aos dedos para desensarilhar do frio, ia tomando nota das suas arremedas ao raiar desses primeiros dias do ano. Desenhara em breves símbolos uns raios de sol, umas nuvens esfarrapadas, o baloiçar da caruma ao favor do vento, as gotas da chuva, os cristais do gelo das manhãs geosas, e numa leveza mais concentrada esboçava a serra forrada de neve. Naquele boletim usual de cada ano ia apontando numa combinação de letras e desenhos uma previsão ao jeito popular, pois já diziam seus avós que “Em Janeiro, verás o tempo do ano inteiro”. Mas bem me avisa o velho que “só o lá de cima sabe! Está tudo mudado…”, confirmando-me uma crença ancestral que não muda, mais do que nunca lhe faz sentido aquele velho quadro numa parede da cozinha onde se emoldura a imagem pitoresca de um Santo António de menino ao colo.
“Acautela-te do frio! anda para o borralho.” Aceitei o convite e logo fiz daquela lareira uma autêntica casa. O velho Tónio ali sentado chegando a samarra ao peito, já descruada da idade, mas que nunca lhe traíra em agasalho, “o que acoita o frio, acoita o calor”. Arrumou o caderno na gaveta de uma mesa e virou-se ao lume, refletindo nas suas retinas as chamas leves que iam moendo um par de cepos de oliveira. “Este ano não cantais os reis?” “Não há nada ti Toino. A melhor oferenda é a saúde.” “Verdade rapaz, e é que nem alembra…”
Poucas horas restavam de luz desse dia frio de inverno. A madeira ia ardendo, sendo o lume a ampulheta de um tempo que passara, sem que nada me arrependesse daquela breve companhia que me aconchegara a memória. A conversa fluía-lhe como uma nascente leve, ansiava por alguém com quem conversar naquela casa tão nua de gente, tão cheia de memórias. “Que este ano que agora entra seja melhor que o passado, mas tá ruim rapaz… bem sabes que vai muito ruim!… Anda o mundo sem dono! Ao menos que seja bom para vós que trabalhais e tendes a vida pela frente, agora nós velhos, já só queremos é sossego e o patrão já não ralha.” Não me contenho de um leve riso enquanto ao meu lado se levantara uma gargalhada. “Olha pelo frio, se o ano não se estragar, muita fruta haverá, bom vinho se o fizeres, azeite se o estimares e muito grão a moer se os bichos não o comerem. Quanto ao resto, muita gente nascerá e outra tanto morrerá.” “Grande Tónio, dessa me ensinas.” “Sou melhor que o Borda d’água!”.
A vida com os seus anos pesados e compassados de muitas vivências são o melhor juízo e experiência que se pode ter para conhecer os tempos, acompanhando a mudança das décadas, a metamorfose da paisagem, a transformação da sociedade.
O maior astro teimava em desaparecer. O canto da água penetrava pela casa, esse som cachoeiro do ribeiro que no silêncio se erguia como o fumo ascende das chaminés. Entre uns bons minutos de conversa chegara a hora de a terminar. O homem acompanhou-me ao pátio onde ficara encostado aos degraus do balcão. As tesouras traqueavam o compasso dos podadores numa vinha ali ao pé, onde as varas iam ficando para uma empa anunciada. Lançamentos que juram bom mosto se empados com jeito e carinho como uma “mãe que faz uma trança a uma filha”. Os rebanhos iam regressando aos cortelhos, correndo a borregada atrás de tanta lã que a aconchega nestes dias de neve. “Nunca mais chegam-nos dias grandes… Noites desertas estas…” Saudades desses dias livres e tamanhos que muito se anseiam, mas “a vinte de janeiro uma hora por inteiro, e quem bem souber contar meia hora lá há de achar.” “Inté amanhã se Deus quiser!” e nessa entrega a um Deus regente regressei a casa. O velho Tónio ali ficara no meio do lugar, entregue a essa noite grande como dizia, a esse negrume de solidão que tantos como ele vivem.
A penumbra invadia o vale, envolta de um frio gélido que empurrara todos os seres para seu abrigo. As estrelas iam acendendo como preciosas candeias que cintilam em luz de presença. O rádio bafurda as notícias e em poucos minutos vem-me à ideia aquela expressão, “Anda o mundo sem dono!”.