11 de Outubro de 2024 | Coimbra
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LUCINDA FERREIRA

As Ilhas do Diabo

28 de Agosto 2020

Depois da visita à Estação Espacial Europeia de Caenne, que nos fascinou a todos, e sobre este assunto, havia muito a dizer, acabámos nas Ilhas do Diabo… Até lá chegarmos, foi o cabo dos trabalhos.

O mar estava bravão. O barco frágil para pequenos grupos, casca de nós no mar profundo, quase se virava!

Os turistas belgas, franceses e suíços, clientes para quem eu fazia conferências, num barco grego, estavam amarelos esverdeados. Alguns vomitavam. Outros maldiziam a sua curiosidade de querer vir para aquele lugar maléfico e amaldiçoado. Quando terminou aquele susto, que mais parecia a última viagem das nossas vidas, o guia local anunciou a chegada às Ilhas do Diabo.

Começou por nos assustar a todos, quando, sorrindo maliciosamente nos disse que estávamos com muita sorte… Antigamente aquele lugar de “acolhimento”, era um mar de sangue habitual.

Um turista mais ousado, meio assustado, arriscou e perguntou:

– Por quê, um mar de sangue?

– Ah! Não tenham medo…- respondeu o guia num francês meio arrevesado – Para aqui justamente eram atirados, do alto desta barreira (e apontava), os prisioneiros metidos em sacos atados a rigor. Os tubarões que abundam neste mar, no seu aguçado faro, logo detetavam ser uma bela refeição. Dilaceravam os homens, dum trago, saboreando o petisco, alguns ainda vivos!

Os mais sensíveis arrepiaram-se.

Exclamavam: Oh… la…la… e sorriam com sorrisos amarelos, fazendo-se fortes para não chorarem.

As senhoras arrepiavam-se, com gritinhos assustados…

Outros, virados para dentro de si próprios, em perfeito silêncio, mordiam os lábios.

Chegámos finalmente à ilha de São José, a Maior. Mais frondosa e apetecível, onde estavam os serviços centrais, morada do funcionário superior e outros, com suas famílias, ao serviço da França, dona das ilhas de deportação de prisioneiros políticos, ditos dos mais perigosos!

Em 1946, num espírito de repressão, o homem lobo do homem, criava uma colónia penal francesa, destinada a prisioneiros ditos perigosos, abrindo assim as portas à dor mais pungente que se podia imaginar!

Depois… Bem depois, à medida que avançávamos nestas ilhas, o testemunho e expressão da memória de horrores aumentavam.

Nas Três Ilhas do Diabo que compunham este lugar sinistro e medonho situavam-se as celas dos prisioneiros, ainda com os riscos meios sumidos, na parede de pedra cheia de bicos, recordação dos dias de tortura intermináveis e sinal de morte lenta.

Num cubículo minúsculo em pedra, um buraco no chão para as necessidades e um buraquinho minúsculo, nas portas de ferro, por onde entrava o mínimo de comida, para prolongar o sacrifício e a agonia, mantendo vivos os infelizes, que acabavam por morrer desterrados, roídos pela injustiça, mentira e traição.

E tudo isto, na maioria das vezes, só porque pensavam de maneira diferente ou porque alguém os tomara de ponta e os denunciara, levados por sentimentos inconfessáveis.

Só porque alguém no seu asco mentiroso os acusara, por inveja. Talvez ainda, alguém que arriscou ser, fazendo sombra a algum poderoso, também por isso era condenado perpetuamente.

Quem sabe em Portugal, a PIDE tenha cometido proezas semelhantes…

A política, já há muito, que deixou de servir a Polis, para se servir a si e aos seus, passando por cima de tudo e todos, que depois das eleições ficam sem voz e a engolir sapos vivos!

Feita furiosamente de ambição e poder, transformou-se em algo asqueroso. Doentio. Em todos os partidos e em todos os países.

Estes martírios aqui sofridos, nestas Ilhas do Diabo, a que se devem?

Aliás, tal como disse Eça de Queiroz, “Os políticos, tal como as fraldas, devem ser trocados de tempos a tempos, pelo mesmo motivo”.

A visita prosseguia, naquele mundo de horrores. Recordo-me de algo que me tocou em particular. Foi o caso de um grande painel nas paredes da Capela, fixando as expressões de sofrimento intenso, que o tempo ia apagando, mas onde ainda transpareciam traços de rostos de homens amordaçados e consumidos em torturas diabólicas de requinte castigador, a fim de confessarem crimes que nunca tinham cometido!

Seguia-se ainda, a visita ao cemitério dos funcionários, ao fim e ao cabo também uma forma de ser prisioneiro, naquele ambiente e isolamento feroz…

Claro que os homens, sem espaço nem trabalho extra, eram atirados aos tubarões. E por ai além.

Lá ao fundo, emergia uma cabana de onde escapara e se evadira o prisioneiro Papillon, celebrado mais tarde em filme, pela sua proeza inconcebível e inexplicável, neste lugar de vigilância e alta segurança.

Ilhas do Diabo, testemunho dos estragos do ódio, da vingança, do poder e da ambição do homem que é capaz de infligir torturas lancinantes a seres humanos, tal como ele, condenando-os mentirosamente uma vida inteira, a uma morte lenta e solitária, chegando-se depois à conclusão que tinham sido punido erradamente, como gente perigosa!

Depois de tanto sofrimento adivinhado aí vivido, despedimo-nos das grandes oficinas, já sem telhas, cobertas de silvas, onde tantos apodreceram na injustiça e na revolta, sujeitos a trabalhos forçados, o resto das suas vidas, por uma condenação arbitrária.

Levados por emoções fortes, os passageiros que tinham de atravessar de novo o mar escuro e revolto para sair daquele lugar tão funesto, já nem se lembravam do susto da viagem de vinda e da surpresa e do medo que os esperava, no regresso…

Mas hoje era dia de emoções fortes!

No entanto, ninguém queria ficar mais tempo naquele lugar maldito cheio de recordações pesadas a cheirar a decisões diabólicas e cruéis!

Para mim, nunca mais esqueço aquela visita a um lugar de bichos medonhos, que se podem ver, crescendo num lugar luxuriante!

A Guiana Francesa é assim mesmo: luxuriante, ameaçadora e perigosa!


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