9 de Novembro de 2025 | Coimbra
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António Inácio Nogueira

UM LIVRO QUE AINDA CHORA

20 de Maio 2022

A Rita deu ao seu livro o nome de “Hugo o Anjo Sonhador”, uma edição Cordel d´ Prata.

A autora, dedica-o à sua filha Lúcia, nascida após a tragédia do Hugo, – a sua morte. A contracapa do livro ajuda-nos ao entendimento da obra quando nos adverte de que o Anjo Hugo morava num lindo reino celestial, mas sonhava em poder viver na terra durante uns bons largos tempos. A autora informa-nos, ainda, que o livro é uma história de fantasia tendo por base acontecimentos reais a dar corpo a estas quimeras. O livro apresenta uma ilustração bem concebida que elucida a escrita e o seu corpo.

Sabemos que a biografia é uma disciplina superior da Literatura. Na ficção, os romancistas, os cientistas, os autores, apresentam a vida, a realidade e criam personagens que servem a tecedura da obra, o enredo, inventam os acontecimentos.

Assim, é neste livro também, onde na sua leitura sou cativado pela figura mítica do Mestre e pelo Anjo Hugo, os dois, um misto entre o real e o imaginário. Foi, por isso, que neste frenesim de figuras consegui construir dois quadro vazios, transparentes, enxergáveis de um lado e do outro da parede que os sustém. No primeiro quadro, reina a fantasia e o imaginário que irei pintar com cores reconfortantes. Ao centro, com o Grande Mestre em cima e o Anjo Sonhador Hugo em baixo, a ligação faz-se por uma corda bem forte. O Anjo sonhador puxa para baixo com a força das suas convicções. O Grande Mestre puxa em sentido contrário, na perspectiva de levar o Anjo Hugo para o seu reino. O Hugo desejava ficar na Terra junto dos seus pais e conhecer a beldade azul do planeta.

Às tantas o Mestre consegue fazer um esforço final e faz subir o Anjo para o seu reino. Aperfeiçoei-me na pintura do quadro com tintas esbeltas de várias cores. A tela por mais que eu pintasse ficava sempre negra. Negra, negra de luto. O Hugo não voltou à Terra, para desgosto dos seus pais e família.

Agora tinha à minha frente o outro quadro dos acontecimentos e personagens reais, ou seja, do real. Eram os testemunhos de uma manhã vivida por mim, o avô António, também pintor desta pantalha, mortífera, desesperada, desesperante.

Era uma manhã serena, talvez um pouco pardacenta, quando saí de casa a caminho do Café Santa Cruz que frequentava religiosa e diariamente.

Estava sentado, numa mesa lá bem ao fundo, com o Diário de Coimbra nas mãos, lendo as últimas da urbe, quando recebi a notícia do falecimento do meu neto.

Abandonei o Café, desaforado, caminhando sem sentido; tropecei em duas cadeiras, quase caindo, e dirigi-me à paragem do autocarro. As lágrimas saíam dos meus olhos como golfadas de fel. Indignado com a vida. Entrei, o motorista perguntou-me se precisava de ajuda e a minha resposta foi seca e irascível, retorquindo que não precisava de nada nem de ninguém. Agora já não preciso de nada, tudo finou…

Saí do autocarro à entrada da maternidade, expliquei ao segurança o acontecido, mas este com ar impositivo, disse-me que não podia entrar. Empurrei-o com força contra a parede, com aquelas forças que só se arranjam nas ocasiões de muito desgosto. Entrei, subi as escadas, correndo, tendo a atrás de mim, a sonoridade de um carrasco que me quer mandar para o cadafalso. Uma enfermeira com ar meigo, protege-me e leva-me ao lugar da desgraça.

Entrei a porta, olhei bem ao fundo, não querendo ver nada. Ao fundo junto à parede e velando um menino que estava metido num daqueles sarcófagos de vidro, lugar onde se salvam muitas vidas, mas aonde também se morre, o pai e a mãe, tristes, pungidos, estavam dobrados sobre o pequeno ser que havia partido há pouco tempo.

De longe pareceram-me dois velhinhos que a adversidade envelheceu novos. Cheguei, não fui capaz de balbuciar uma única palavra sequer. Nem um consolo tão-pouco. Olhei através do vidro o meu neto, estava sereno, tive a ideia de que voava como fazem os pássaros a caminho de outro cosmos. Os pássaros. Os pássaros a caminho, acarretando o meu neto.

Levantei o protector de vidro, dei-lhe a mão, passeei-a pelo corpo ainda quente. Tive a sensação de que não queria partir. Os pássaros estavam impacientes. Afastei-os em vão. Ao menos tive a felicidade de quase o ver partir.

Já não tinha o meu companheiro de bola que me havia de ajudar a subir as escadas íngremes, onde tinha o meu lugar cativo. Já não tinha o tudo que agora era o nada. Maldito dia 16 de Fevereiro de 2013.

Ali estava eu, fechei os olhos… e, devagar, devagarinho, tentei abstrair-me de tudo o que me cercava, e lá vem o amor vertendo do meu imaginário.

Meu amor. Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te. Como dizia o poeta, tudo me prende a ti a milhões de quilómetros de distância.

Meu amor. Amo-te porque sim, mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. Que bonitas palavras, estas, de Joaquim Pessoa, que se acomodam tão bem a nós dois.

Meu amor. Vou terminar. Falta aqui dizer muita coisa, muitas palavras que não sei pronunciar nem escrever. Mas eu pergunto-me: serão necessárias mais palavras? Não. Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de certezas e nós somos a certeza dos dois.

Terminou o silêncio que todos havíamos feito. Horas sem tempo sempre que a solidão muda de som, numa viagem improvável.

Peguei na cadeira de rodas com a minha filha Rita e levei-a para o quarto banhada em lágrimas e desespero.

Até quando? Por muito tempo.

Adeus Hugo. Até um dia no reino esplendoroso do Mestre. Nessa altura já serás grande e o avô um velho que não resistiu mais à vida.

Lúcia minha neta, este livro foi-te dedicado para que nunca esqueças o Anjo que nos deixou para infelicidade dos teus pais e minha,

Lúcia tu ficaste a saber, que eu sei, que o mundo, lá no fundo não tem lei. Sim, qual lei?


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