Todos os dias, por volta das 5 da tarde, saem da ramagem espessa do jardim, situado em frente da minha janela da cozinha, dois melros grandes de bico amarelo. Brincam, saltam, estão sempre nervosos por instinto, confiantes por sabedoria. Não olham para os passeantes que se aproximam, não me olham nunca, não me ligam, sou um pedaço de nada a quem os melros de bico amarelo nada dizem. Procuram minhocas e insectos na relva tenra, debicando aqui e ali.
Passado cerca de uma hora regressam ao seu esconderijo de papo cheio.
Estes melros nada têm a ver com os muitos que fui observando nas duas aldeias beirãs onde ia passar férias e residiam os meus familiares.
Os da cidade, refiro-me á cidade de Coimbra, para onde se têm deslocado muitos, caminham pelos espaços verdes, onde encontram alimento nos jardins e parques –, e inesperadamente indiferentes ao passar das pessoas. Por vezes, conseguimos aproximar-nos até estarmos a um metro deles. Faça – se a experiência, por exemplo, no Parque Verde.
Os melros que conheci nas terras do interior beirão, em nada se comparavam com estes dois amigos que me fazem companhia todos os dias. Rebeldes, fugidios, de aproximação difícil, diziam até, por lá, que um dos olhos via em frente e o outro de lado para melhor se protegerem e fugirem. Raramente caíam nas armadilhas chamadas «costilos» ou «costelos» de que neste jornal já falei; nunca consegui apanhar nenhum.
Vi melros pretos de bico amarelo e as suas fêmeas, mais claras, meio cinzentas, com o bico de coloração amarelo desmaiada que se deixavam ver mais de perto. Mas, logo que ameaçados, fugiam em voo veloz e desordenado assobiando estridentemente.
O melro-azul era bonito, só vi meia dúzia deles, andavam pelas escarpas, era um pássaro solitário e de vida em pedra bruta. Vi cotovias e estorninhos, a quem os rapazes da aldeia, meus amigos, também chamavam melros. Asseguravam – me, sem vacilações, que também eram melros.
Observei, também, tordos às dezenas. Esses meus companheiros de brincadeira da aldeia juravam pela alminha da avó que os tordos, aves emigrantes que chegavam na altura da apanha da azeitona, também eram melros. Vinham comer a azeitona, e portanto eram inimigos do povo. Eu e os meus amigos tínhamos fisgas bem artilhadas que atiravam pedras a longa distancia. Vi-os caçar muitos desses animais, tinham pontaria apurada. Nunca apanhei nenhum: limitava-me a comer o delicioso «arroz de tordos», um menu sempre bem-vindo.
Todos estes pássaros soltavam melodias reconhecíeis e um assobio inigualável.
Estes animais nunca tiveram uma aproximação grande ao homem. O que é certo e estranho, é que havia muitos ditados populares a eles alusivos, todos com interpretações bem curiosas.
“Cada tiro, cada melro.”
“Água ao melro que lhe seca o bico.”
“Cantam os melros, calam-se os pardais.”
“ Melro que pia, o poiso denuncia.”
“Melro que bem assobia, muita minhoca já engoliu.”
“Quando o melro canta em Janeiro, é tempo de sequeiro o ano inteiro.”
“Melro de bico amarelo, come a semente e o farelo”.
Pois é… já me esquecia…São horas de ir à janela da cozinha espreitar os meus amigos melros.
Lá estão eles. Por detrás do vidro espreito o silêncio. Para mim o nada tornou-se tudo, do lado de fora, porque dentro continuou nada.