9 de Novembro de 2025 | Coimbra
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António Inácio Nogueira

Testemunhos: Apologia ao silêncio, silêncio azul, silencia da pobreza

30 de Setembro 2022

A minha ausência foi só uma maneira de me refugiar na tarde, no silêncio que corria nas rugas da melancolia, por estar doente e os anos já pesarem. Ouvia em emudecimento, as ondas do mar e olhando além, o azul do mar e do céu. Como eu passava longas tardes sentado no paredão da Praia do Pedrógão e quantas páginas dos meus livros, não foram escritas no Inverno, ouvindo o silêncio (o azul sujo, de branco, azul ainda um pouco brancamente), das ondas ribombando contra as dunas. É que as ondas têm silêncios (tons verde de azul preto, azul meio negro). E há ainda o azul-verde das Amoreiras do Mondego e o azul meia negro de Paços da Serra onde deixei tantas e tantas memórias

Foram esses lugares uma pequena praça, onde há muitos anos aprendi a ser árvore azul, ressentido da cidade e, com as raízes principais, a minha família desaparecida, e eu perto de abalar. O azul assim, o azul branco, o azul sujo, de branco, o azul ainda um pouco brancamente, o azul ainda um pouco esbranquiçado, o vago azul branco, o azul ainda não bem azul, azul claríssimo, azul pálido, azul menos pálido e menos azul, azul esverdeado para cinzento branco, azul esverdeado a ouro azul, azul tons verde de azul preto, azul meio negro, azul rubro, azulado de amarelo, esbatido azul alheio, mau azul, azul sempre inédito, azul alto, azul amor, azul puro, são todos resíduos da minha vida passada. (Fernando Pessoa, utilizado por José Tolentino Mendonça).

Dessa paixão deixarei que uma pétala de alguns deles poise nos livros que escrevi e contem sobre elas as minhas memórias passadas.

É, por isso, que cada vida pode ser um livro. Ou, então, uma lembrança que se leva até à morte.

Ao longo da vida, fui escrevendo sobre gentes e lugares que muito tinham a ver com as minhas raízes e memórias, sempre com o azul presente. Redigi este último impresso, o da terra do meu pai, também azul. Eu também estou presente, embora, por vezes, ausente.

Dou sempre tempo ao tempo. Prolongo o meu tempo e o tempo deles, para além do tempo que vivo e vivem, porque só morremos quando morre a última pessoa que ouviu falar de nós. Por isso, temos memória e memórias, porventura, imaginários, que dão tempo e vida aos que pereceram. E mesmo assim, deslumbro o azul do céu e das águas do mar, a minha paixão.

Nenhum outro bem é tão precioso como este que escrevo. Um livro é para lembrar. Quero guardar a vida, quero guardar as pessoas, quero guardar as reminiscências. A vida tem pessoas dentro, a minha tem muitas. Quero guardar a memória para não a perder, quero lembrar, quero poder rever sempre de azul vestido. Na minha memória estou eu, estão eles e elas, está isto e aquilo. O azul. Nas minhas memórias estou eu, estão tantos, está tudo azul, azul amor.

A vida tem pessoas dentro. Às vezes responde com uma casa em ruínas, com paredes de pedra, com objetos, um prato, uma máquina de costura, uma panela de onde se vertia o caldo, a cestinha da fruta, o solitário das flores, os castiçais que alumiavam a imagem do santo milagreiro, panos bordados com mãos de fada, quadros, livros, cartas, fotografias, e tantas outras recordações que, em muitas ocasiões, descuidadamente, deitamos fora. Mau azul.

Vou guardar para não esquecer.

E, agora, pergunto-me quanto tempo o tempo tem? Umas vezes é lento e sofrido, como agora, outras é turbulento e rápido como um vendaval. É nos interstícios das duas velocidades que perpassam e se agitam as minhas memórias. Dos que ficam aos que voltam sempre. Por isso, vou recordar a minha avó Leocádia de azul vestida.

Tudo o que sei dela está plasmado em duas fotografias e nas memórias que o meu pai me contou e deixou. A avó conheceu por dentro a pobreza e as agruras da vida. Talvez por isso, fosse uma mulher determinada, apesar da sua figura frágil e da tristeza que a sua face parecia deixar transparecer. Viveu uma época abalada por graves crises económicas, sociais e políticas, envolvida pela miséria, pelo analfabetismo e pela guerra.

Foi mãe de vários filhos, alguns morreram prematuramente, fruto da falta de condições assistenciais e de salubridade que agravavam a probabilidade de mortalidade infantil ou de morte prematura.

Para criar essa grei, trabalhava de sol a sol. Era estimada no lugar por ser a parteira e a conselheira do povo, a zeladora dos pedintes e esfarrapados, que a apelidavam de «mãe Maria». Apesar das suas dificuldades, nunca ficavam sem uma malga de sopa quente.

O meu pai, sempre teve uma grande adoração por esta mulher de coragem, a sua mãe, e, quando se aproximava a morte, aos 97 anos, clamava por ela.

Um dia, encontrei-o sentado na sua cadeira de rodas, como de costume, e, já bem perto do seu dia final, com a cabeça caldeando ficção com realidade. O seu rosto, quase sempre, personalizado e austero, apresentava-se bem ridente. Logo que me aproximei, e não dando tempo, sequer, para lhe dizer Boa Tarde, explodiu de contentamento: – Tó, hoje fui a Paços de cadeira de rodas e voltei a tempo para jantar, como podes ver…estive com os meus irmãos José e Zulmira e fomos, os três, a casa da minha mãe. Como gostei de os ver a todos! Estão velhos, tal como eu. A mãe pôs a merenda na mesa, aquela broa amarela tão boa, pão centeio e um bocadinho de chouriço. Um «pichorro» de vinho, também. A cozinha ainda estava como era, só que mais negra, pois, o fumo da lareira que vem da «acha», permanentemente acesa, a vai tornando encarvoada. Ó Tó, queres saber uma: de repente desapareceram todos e deixaram-me só. Fechei a porta e vim embora. Nunca mais lá vou.

Por tudo isto, a relembro amiúde com enlevo. Um relembrar de azul meio negro,

Avó, que caminhada eu fiz nestas tão poucas páginas bordadas a azul amor. Por isso, já não é preciso ver-te. É só preciso sentir-te!

Pronto. Azul vago de branco.

 


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