19 de Junho de 2025 | Coimbra
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António Inácio Nogueira

TESTEMUNHOS: A Mota Do Meu Avô

14 de Julho 2023

A memória existe, sempre aliada ao esquecimento, um não existe sem o outro, sempre que se evoca o passado. É a memória que nos dá a sensação de pertencente a qualquer coisa, daí a importância dos lugares de memória para os indivíduos.

A história oral relaciona-se com as estórias e as memórias pessoais contadas por alguém sobre o seu passado. Há memórias que produzimos que são ligadas ao amor incondicional a algumas pessoas como pais e avós. Não se pode excluir outros como a abominação, o rancor e o medo que são determinantes para uma memória se agarrar às nossas reminiscências.

Adoro memorar memórias, as tradições herdadas, por exemplo, que fazem parte de nossas identidades, sentimentos entranhados, como amor, ódio, humilhação, dor e ressentimento, que aparecem (embora às vezes os queiramos esquecer), independentemente de nossas vontades.

Apresento este adorno teórico porque ajuda a compreender a conversa que tive com um amigo meu, já lá vão uns anos, à mesa do café.

Dessa conversa ficou-me plasmada a ideia de que as mágoas do presente vêm lá bem do fundo das calendas. Confessava-me esse meu amigo, com a mágoa escancarada no rosto, que as relações com o seu único filho eram tensas, nada cordiais.

-“Amigo António, as nossas relações são um inferno…mas olha as minhas com o meu falecido pai, eram muito piores, violentas, desprestigiantes, posso dizer que quase não tive pai. Fui caminhando com o meu esforço e força de vontade e ele?…era mau,
rancoroso. Quando penso nele, sinto arrepios, tal como agora…”

Acrescentou o meu amigo: – “ às vezes penso que ele fez cair sobre mim a maldição que me consome todos os dias…”

Depois de uma longa conversa, e até discussão, sobre a influência das memórias na nossa vida actual, o meu amigo levantou a voz e revelou : – “ olha, nunca visitei a campa onde foi enterrado o meu pai, vê lá tu, o que sinto por ele!…”

Perguntei-lhe, siderado, – “então não houve ninguém da família que te desse apoio e carinho enquanto pequeno?” Respondeu de imediato – “ sim, o meu avô, se não fosse ele que seria de mim… foi, muitas vezes, o substituto do meu pai.”

Ao falar no avô senti o meu amigo mais distendido, calmo, as mãos deixaram de tremer, sorriu pela primeira vez, disse : – “e tenho com ele uma ligação afectiva tal, que é ele que me vale, ainda hoje, nos momentos mais desesperantes da vida.”

Então, porquê, perguntei? A resposta não se fez esperar: – “ o meu avô tinha uma mota, bonita, que eram os meus encantos…quando já velho e com medo que os descendentes a vendessem ou deixassem deteriorar, esquecida nalgum canto, ofereceu-a a um Museu … ainda lá está em lugar de evidência.”

Perguntei curioso: “…E já a foste ver?”. Riu-se o meu amigo e arrematou entusiasmado: – “ muitas vezes … sempre que estou deprimido com a vida … angustiado, sozinho, pego no carro e vou até lá … entro no museu, vou até junto da mota e paro em
frente dela e ali fico, às vezes, uma hora, recordando a vida madrasta que vivi e quanto aquele homem, meu avô, a tornou menos agreste … Foram dele as únicas palavras boas que ouvi, de incentivo, …”

E estás lá muito tempo, perguntei? Responde: “O que for necessário para aliviar a alma e ganhar força para recomeçar a vida de forma mais serena. Conversamos muito. Depois despeço-me dele e da sua moto … parece que o vejo a caminhar e a sua mão a
abanar em sinal de despedida. Adeus avô, eu volto cá…”

“À saída do museu , o que sentes?”, pergunto eu. Replica o meu amigo: “Um alívio de alma do tamanho do Universo que me dá força para continuar…”

Despedimo-nos, e, já a uns passos da mesa do café, ouvi o recado que me deixou: “Quando nos voltarmos a encontrar, já voltei a ir ver a mota…até mais ver, António.”

Não nos voltámos a encontrar. A morte, provocada por uma doença intrincada, derrubou-o

Posso acrescentar: quando nada mais além das memórias resta, é a elas que voltamos. São, por vezes, o nada que é tudo. Para o meu amigo foi tudo. Como já afirmámos no início do texto, a memória revigora-nos a emoção de pertença a qualquer coisa, a qualquer lugar, a qualquer pessoa, daí a sua importância para a vida dos indivíduos. Para a vida do meu amigo.

É um testemunho comovido de alguém que já partiu há muito tempo. Eu sei que levou a mota consigo, pois, já não consta do espólio do museu, A Mota Do Avô.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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