22 de Janeiro de 2025 | Coimbra
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Orlando Fernandes

Semana a semana: o sofrimento ou dor espiritual

24 de Fevereiro 2023

Quando leio um acórdão de um tribunal, fico maravilhado. Os juristas são uma espécie à parte. Razão tinha o meu irmão, que queria que eu seguisse Direito em vez de jornalismo. Tenho a certeza de que seria feliz. Vem isto a propósito da decisão do Tribunal Constitucional sobre a inconstitucionalidade da lei relativa à morte medicamente assistida.

Quando ouvi a conferência de imprensa dada pelo presidente do TC a explicar os motivos inconstitucionalidade da lei, não queria acreditar. A dúvida sobre a interpretação da exigência de “sofrimento físico, psicológico e espiritual” era surreal. No Ciberdúvidas usam a lógica booleana e explicam que “e” implica que as condições sejam cumulativas: a primeira e a segunda e a terceira. Todas teriam de se verificar simultaneamente. Como aceitar a hipótese de interpretar como “ou”: a primeira ou segunda e a terceira?! Lá fui com curiosidade ler o acórdão e, realmente, estão lá exemplos de interpretação distintas. O mais engraçado de tudo foi mesmo ler as declarações de voto dos vencidos. Houve três declarações: uma assinada por Joana Fernandes Costa, outra por José João Abrantes e ainda outra assinada pelos restantes quatro elementos vencidos – Mariana Canotilho Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e Figueiredo Dias.

Ora, Joana Costa considera que, a passo a citar, “a conjunção aditiva que liga os três termos que definem as dimensões relevantes do sofrimento (´físico, psicológico e espiritual´) não pode dispor de um sentido no valor coordenativo diverso daquele que inquestionavelmente exprime”. Daí conclui que não é possível “fundamentadamente” admitir a hipótese de as condições não serem cumulativas)”.

Já José Abrantes considera que as dúvidas da maioria relativas à interpretação da norma são, e posso a citar, “manifestamente insustentáveis”. Isto porque “o enunciado “sofrimento físico, psicológico e espiritual”, sempre pareceu claro, no sentido de que compreende condições alterativas (e não cumulativas)”.

Finalmente, o grupo dos restantes quadro entende que a nem uma interpretação nem a outra são corretas: condições cumulativas seriam, excessivamente restritivas, mas considerá-las alterativas “seria alargar, de maneira potencialmente problemática, o conjunto de possibilidades e que se permite o acesso à morte medicamente assistida”. Segundo o Ciberdúvidas, dever-se-ia escrever “e” barra “ou “: e/eu.

Em suma, entre os que são a favor da constitucionalidade da lei há quem interprete a conjunção” e” como cumulativa, há quem a perceba como alternativa e quem a veja como uma mistura de ambas, clamando por uma interpretação holística. É formidável.

Lendo o acórdão torna-se perfeitamente claro que, se a Assembleia da República clarificar a lei no sentido de as condições serem alternativas e não cumulativas, o TC vai chumbá-la por ser demasiado laxista. É também óbvio que o assunto é político e ético, e não jurídico ou constitucional e em sentido estrito. Fica a ideia de que o método de decisão está invertido; os juízes têm uma opinião de partida sobre a eutanásia e depois encontram argumentos que a fundamentem. Com constituições semelhantes, Tribunais Constitucionais de outros países declararam inconstitucionais leis com interpretações restritivas, obrigando-as a serem mais libertárias precisamente para respeitarem a autonomia do indivíduo.

Se o assunto fosse jurídico-técnico e não ideológico, não veríamos os juízes indicados pelo PS a votarem todos contra e os indicados pelo PSD (com exceção de Figueiredo Dias) a favor da inconstitucionalidade das normas. Os mais conservadores têm o respaldo do Presidente da República e já decidiram que a lei não passa (ou que, se passar, será na sua versão mais restritiva). Fico também com a ideia de que Marcelo Rebelo de Sousa, beato como é, pode mandar o Governo abaixo para evitar versões mais permissivas da lei – claro que usaria outra desculpa qualquer.

Se tivesse havido um referendo, com uma eventual vitória do ´sim´, as condições políticas poderiam ser diferentes e talvez os juízes mais centristas se sentissem na obrigação de deixar passar a lei. Infelizmente, neste momento seria intolerável para a maioria parlamentar aceitar um referendo e ceder ao PSD e ao Chega neste assunto.

Assim tanto quanto percebo, resta um caminho viável à esquerda: aprovar a versão restritiva da lei, impondo a três condições de forma cumulativa o que talvez passe no TC (e mesmo assim é provável que enfrente novo veto do Presidente, provocando mais alguns atrasos). De seguida, quando houver um TC com uma composição mais liberal e se mantiver uma maioria na AR favorável, poderão introduzir alterações que alarguem o acesso à morte medicamente assistida.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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