20 de Junho de 2025 | Coimbra
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Orlando Fernandes

SEMANA A SEMANA: A REVOLTA NO MONDEGO

31 de Março 2023

A 22 de junho de 1905, a bordo do couraçado Potemkin, navio da frota russa no mar Negro, um grupo de marinheiros recusou-se a almoçar. Consta que a carne servida na sopa estava podre e cheia de larvas. O segundo-oficial do navio, Ippolit Gilliarovki, não esteve com meias-medidas e ameaçou com fuzilamento imediato quem se recusasse a comer. A disciplina na Marinha de guerra, então como hoje, era a lei da vida. Ou devia ser. O gesto de prepotência bastou para que estalasse um motim a bordo e para que os revoltosos tomassem o controlo do navio.

Conscientes do ambiente de crescente desencanto e revolta que se vivia no império (e que tinha já desembocado, nesse mesmo ano, no trágico massacre do Domingo Sangrento em São Petersburgo), os amotinados desfraldaram a bandeira vermelha e rumaram a bombardear Odessa, onde grassava já uma revolta contra o czar. Tudo isto e onde tudo isto acabou, obviamente muito melhor do que eu, haveria de contar Sergei Eisenstein no seu filme de 1925.

Filme que eu, num absurdo arredamento cinéfilo que ainda hoje me é justissimamente cobrado, obriguei o meu filho a ver com a provecta idade de sete anos. Mas divago, como já perceberam. Divago porque por estes dias não consegui de pensar no Potemkin, no Eisenstein, no De Palma que o homenageou copiando-o (ou o copiou homenageando-o, não sei bem) e, claro no meu pobre filho precocemente industriado.

E pense em todos, já o terão percebido, por causa da revolta caseira no Mondego, um navio-patrulha português destacado para uma missão de acompanhamento de um barco russo, que acabou por ficar em terra com um motor avariado, um segundo com manutenção adiada há 2000 horas um gerador inoperacional, diversas fugas de óleo e – literalmente – a meter água, É certo que os marinheiros revoltosos não tomaram o controlo do navio. E é sobretudo improvável que um realizador de renome se lembre de imortalizar em filme este episódio grotesco. Mas convenhamos que era difícil encontrar uma melhor metáfora para o estado do Estado.

Por mais que tentemos, é impossível continuar a tapar o sol com uma peneira. Por todo o lado o Estado se degrada, decai e definha. Por todo o lado falha clamorosamente nas mais básicas das suas missões. Na defesa, a prontidão é a que este caricato episódio revela (a propósito: os três Leopard já terão seguido para a Ucrânia?). Aliás, já em dezembro Gouveia e Melo revelava que a Armada recebia sensivelmente metade do que precisava para a manutenção dos seus equipamentos. E eis que a ministra da Defesa correu agora a aprovar, tarde e a más horas, a reboque dos acontecimentos, a Lei da Programação Militar. Acredita no milagre quem quiser.

Na saúde, o colapso do SNS consegue ser mais estrepitoso. É certo que Marta Temido teve, entretanto, uma epifania. É certo que o diretor executivo do SS também já veio criticar o fim das PPP. Mas os resultados de anos de política demagógica (sim, estou a pensar nas 35 horas) e eivada de preconceitos ideológicos não se compadecem com esses arrependimentos tardios. Os resultados estão à vista de todos, as greves sucedem-se, as demissões também, sobretudo penam os utentes.

Na habitação, depois de uma legislatura de promessas tonitruantes e absoluto imobilismo, o Governo é obrigado a constatar o óbvio: anos de desinvestimento deixam o Estado sem instrumentos mínimos para cumprir um qualquer papel regulador. Só 2% de todo o parque habitacional é público e é manifestamente impossível cumprir o desígnio de o subir para 5%. Também aqui se corre atrás do prejuízo. Também aqui a tentação é a da irresponsável fuga para a frente. Pelo caminho ficarão os cacos de um arrendamento local que (precisando de ser regulado) muito fez pela reabilitação urbana.

Valerá a pena falar da educação ou o caso prova-se sozinho? Certo é que o desnote será pago – e bem pago – pela mesma geração de crianças desfavorecidas que ficou para trás na pandemia e que agora se vê impedida de aceder a uma escolaridade minimamente funcional.

Ou da justiça, onde o descontentamento dos funcionários judiciais já ditou o adiamento de mais de 15 mil diligências somando atrasos ao crónico atraso que, na prática, a denega aos portugueses? Ou são os desmandos nos transportes, na TAP na CP, na caricata Transtejo com os seus barcos sem baterias que valerá a pena invocar?

Repito. Só não vê quem não quer. O Estado degrada-se, decai e definha. E esse é um resultado intolerável quer para os que gostariam de ver mais presente, quer para os que preferia vê-lo mais reduzido. Nesta matéria, convenhamos, o Governo tem pelo menos o mérito de fazer o pleno: desespera liberais e exaspera socialistas.

 


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