13 de Fevereiro de 2025 | Coimbra
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António Inácio Nogueira

O Tormento de Não Comer

17 de Janeiro 2025

É raro comer bolos ou doces; porque não quero e porque não posso. Mas, ao bolo-rei não resisto. Fatia a fatia, este ano, no dia de consoada quase comi metade de um e na passagem de ano quase repetia a façanha.

Fico cheio de remorsos por cometer essa alarvice, mas desculpo-me dando um estatuto nobre ao meu bolo preferido. Simboliza momentos de partilha, convívio e celebração. Para além disso, o bolo-rei representa a chegada dos três Reis Magos: o tom dourado da côdea representa o ouro, o aroma o incenso e as frutas a mirra. Talvez seja por tudo isso que o como com tal sofreguidão.

De forma redonda, com um grande buraco no centro, este meu acepipe, insubstituível, é feito de uma massa branca e fofa enriquecida com ovos e muitas vezes licores ou vinhos, misturada com passas, frutos secos e frutas cristalizadas. Que bom!

Antigamente, no interior do bolo, encontravam-se também uma fava seca e um pequeno brinde, normalmente feito de metal embrulhado num papelinho branco. Quem encontrasse uma fava na fatia que comesse, teria o dever de pagar o próximo bolo-rei; por outro lado, se calhasse o brinde, a pessoa que o encontrasse seria afagada com “boa sorte”. Para fazer as delícias do meu olfacto, e, principalmente da boca gulosa, apareceram outras versões desta sobremesa: o Bolo – Rainha, o Bolo-Rei de chocolate, o Bolo-Rei de doce de ovos e o Bolo – Rei escangalhado que me escangalha ainda mais a dieta, porque possui um. recheio de doce de chila que «é de comer e chorar por mais».

Mas qual é a história do bolo-rei. De onde veio ele aqui parar?

O bolo de reis no seu formato actual, surgiu na corte de Luís XIV, em França, para as festas do Ano Novo e do Dia de Reis. Vários escritores da época compuseram sobre esta iguaria, até mesmo Jean-Baptiste Greuze a celebrou num famoso quadro com o nome Gâteau des rois. Com a Revolução Francesa em 1789 o bolo de reis foi proibido, no entanto os pasteleiros, que não quiseram perder o negócio, em vez de o eliminarem decidiram continuar a confeccioná-lo mudando-lhe o nome, durante o período revolucionário, para Gâteau des Sans-culottes.

O bolo de reis popularizado em Portugal no século XIX segue uma receita originária do sul de Loire, um bolo em forma de coroa feito de massa lêveda. Tanto quanto se sabe, a primeira casa onde se vendeu em Portugal foi a Confeitaria Nacional, em Lisboa, por volta de 1869-1870. O responsável foi o afamado confeiteiro francês Gregoire (Gregório, como ficou conhecido), recrutado em Paris por Baltasar Rodrigues Castanheiro Júnior, que adaptaram e utilizaram uma receita trazida da capital francesa. Aos poucos, outras confeitarias da cidade passaram também a fabricar o bolo-rei, originando assim várias versões diferentes. No Porto, o bolo-rei foi introduzido em 1890, por iniciativa da Confeitaria Cascais, segundo uma receita que o proprietário, Francisco Júlio Cascais, também trouxera de Paris. As receitas cruzariam mais tarde o Atlântico para chegarem ao Brasil onde similarmente virou tradição.

Com a proclamação da república, em 5 de Outubro de 1910, a existência do bolo-rei ficou em risco por causa do nome conter a palavra “rei”. De acordo com a lógica vigente, deixando este símbolo (o rei) de existir na hierarquia nacional, também no nome do bolo deveria ser alterado. Os pasteleiros ou confeiteiros, partindo mais uma vez do princípio de que “negócio é negócio e política é política”, continuaram a fabricar o bolo sob outra designação; a Confeitaria Nacional chamou-o de “bolo nacional”, muitos chamaram-lhe “bolo de Natal” ou “bolo de Ano Novo”, e alguns menos imaginativos deram-lhe o nome de “ex-bolo-rei”. Descontentes com estas designações, alguns republicanos criaram outras denominações como “bolo-presidente”, “bolo republicano” ou mesmo “bolo-Arriaga”, em relação ao primeiro Presidente da República portuguesa (com a devida vénia à Wikipédia).

Querem crer que este ano, num dos bolos que comi, repetiu-se a tradição e que num deles saiu-me a fava? Ainda bem que tenho de comprar outro para o ano.

O que torna o bolo-rei tão especial vai além do sabor e da tradição – são as memórias. Já disso se deu a entender anteriormente.

. Quem não se lembra [pelo menos os do meu tempo], da expectativa de comer uma fatia e poder encontrar um brinde, bem como do contentamento quando isso, efectivamente, acontecia?

Eu lembro-me bem. Talvez, por isso, o coma, ainda hoje, com tal sofreguidão.


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