4 de Outubro de 2024 | Coimbra
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LUCINDA FERREIRA

O Herói

2 de Outubro 2020

O tempo de verão, nesta época em que vivemos, é quase um susto! Os cardíacos morrem, porque o calor arrasa. Os incêndios são o maior flagelo. Ladrão indiferente. Implacável. Chega quando menos se espera. Leva vidas e tudo que encontra pela frente! Chega de mansinho… De repente. Sem avisar.

Durante 15 anos, fui vice-presidente, servindo nos Bombeiros Voluntários de Coimbra. Vivi intensamente aquelas emoções de socorro e perigo. Dei sempre o meu melhor. Talvez tenha uma costela de bombeira. É preciso, mas não é fácil. Todas as vezes que aquela sineta sinistra toca a socorro, todos nós sentimos o coração aflito a saltar do peito, batendo mais forte e apressado! A enferrujada e velha sineta, meia desgastada, indiferente à nossa apreensão, insistente e aguda, nunca mais se cala! O trânsito pára, curioso e consternado, e lá vão eles por cima de toda a folha… Trim…Trim…Trim… ferindo os nossos ouvidos, deixando-nos em alerta permanente, ressoando sem parar!

Nos arredores da cidade de Coimbra, não muito longe, o Comandante das operações no terreno, abre muito os seus olhos! Berra muito, para ver se consegue ser escutado, pelos que estão mais longe! A adrenalina sobe em todos os seus homens, desde os mais jovens aos mais velhos, que nesse momento, encarnam toda a sua maior coragem. Força. Disponibilidade! Um punhado de raparigas destemidas, junta-se agora também ao grupo de Bombeiros…

E lá vão eles, confiantes, indiferentes a todos os perigos. Lá vão eles rumo ao desconhecido, sem certezas do que pode acontecer. Saber se voltam. Se regressam todos vivos e salvos. Não há mais paz no quartel, até que retornem todos bem!

Aquele dia, 24 Agosto, fervente, trazia o diabo escondido em cada acha que voava pelos ares, espalhando-se por todo lado, provocando novos focos de incêndio, na terra escaldante! Já se via ao longe, uma nuvem negra ameaçando tudo e todos! O Comandante Paulo olhou aquilo tudo e, pela sua experiência, assustou-se um pouco, coisa que nunca acontecia antes. Supersticioso, não gostou do pressentimento. No calor asfixiante os homens gritavam, naquele inferno assustador. Ameaçante. Prestes a tragá-los vivos a todos.

As mulheres da aldeia mais próxima, quase a ser atingida, choravam. Arrepelavam-se! Gritavam, já vendo reduzidos a pó, todos os seus haveres. Recordações e o esforço de todas as suas vidas, de suor e pesados sacrifícios, assim como os seus animais carbonizados. Já não era só o prejuízo, mas a dor de ver aqueles seres num sofrimento tão atroz, sendo assim consumidos. Havia ainda os mais apegados e teimosos, em que as chamas por perto, não os fazia arredar pé. Uma dor de cabeça para as autoridades presentes, que não tinham forma de os persuadir telefonicamente, pois já não arriscavam chegar até eles.

E já não seriam os primeiros a arder lá no meio, tornando-se num ápice, carvão, pó, cinza e nada. As avionetas sobrevoavam aquele antes viçoso mar de verde, que num trago, as chamas assassinas devoravam, empurradas pelo vento, exalando um fumo e um cheiro a queimado, que se espalhava pelos ares, envenenando a atmosfera, até longas distâncias!

– Zé! Puxa a mangueira! Rapazes, rápido! Rápido! Mais rápido! Caraças! Andem depressa, seus papinhas! Depressa! Mais depressa!

O burburinho aumentava, entre os homens! Num último esforço, a fim de salvar a aldeia próxima, já meia envolvida pelo fumo, faziam das tripas coração, lutando o máximo que ainda conseguiam…

O Comandante Paulo Gomes, voz rouca pelo esforço e pelo fumo, tentava guardar a calma. Encorajar os seus homens afogueados. Exaustos! O burburinho aumentava! Outros e outros carros de bombeiros com seus homens, vindos de longe, chegavam. Aflitos e desesperados, exaustos, os homens no terreno, descontrolados, gritavam. Clamavam por ajuda. No quartel, o coração de todos nós, saltava cada vez mais aflito, pelas notícias que iam chegando.

O vento cada vez mais forte, mudara! As dificuldades aumentavam. Os reforços iam chegando àquele inferno, cada vez mais amplo, alastrando sem destino. O barulho das avionetas aumentava o susto, pelo perigo de acidente do pessoal do ar, sobrevoando as altas chamas! Na confusão, alguém está bem atento e em permanente alerta…

O Comandante Paulo sente que alguém ficara para trás. Já não via todos os seus homens! Tal como na guerra, perder um dos combatentes, é fracasso e dor que jamais se esquecem! O som agudo das sirenes dos reforços que chegavam, dos que partiam, era ensurdecedor. A confusão aumentava. Afligia toda a gente perto e longe. Um barulho vermelho. Fundo. Surdo Constante. Implacável e torturado, saltava das pobres árvores gemendo em agonia. Os bichinhos e as plantas rasteiras eram consumidos num sacrifício cruel.

Entretanto, o Comandante Paulo que perdera de vista um dos seus homens, o mais estimado e fiel em quem confiava, pega no carro e vai à pressa, em socorro do Quim, que acabou por avistar no meio das chamas, em grande, grande perigo! Apercebeu-se que para chegar lá, era preciso ir rápido, muito depressa! Naquela pressão terrível, entre a vida e a morte, aquele carro, muito desgastado em já muitas outras semelhantes batalhas, começou a falhar! Agora, já não era possível voltar para trás! A avaria complica-se! Sem conseguir dominar a velha máquina, resvala para uma ravina profunda e… O nosso querido Comandante Paulo deixa de ser visto!No fim de todas as bisadas de espanca e desânimo, no rescaldo, lá estava o que fora um homem bom. Generoso. Obedecido e respeitado por todos! Carbonizado entre os ferros!

Entretanto Quim, socorrido por uma avioneta, num ápice, descarregando toda a carga de água naquele perímetro, foi salvo! De imediato, num desespero incontido e aflito, em ressonância com a dedicação do seu Comandante, procurou-o , desesperado e aflito! Não o viu. Desanimou, mas nunca temeu o pior. O Comandante era o seu herói… E o herói resiste a tudo! Já tinha dado provas de valentia inacreditáveis. Exausto, precisou acreditar que tudo estava bem.

Teve que fazer das tripas coração. Apelar para o resto das suas forças, para não ser tragado pelas chamas que avançavam, sem contemplações. Pertinho das casas, a serra antes cobertura de verde, fumegava sob os seus pés, num estertor mortal…

Reforços, as avionetas únicos meios que podiam avançar, sobrevoavam as chamas sem descanso, para salvar a povoação, já ali ao lado. No Quartel, sabia-se que o Comandante Paulo não respondia. Podia acontecer, no meio daquelas momentos tão emocionantes e exigentes. Talvez nem ouvisse.

Noite dentro, o fogo avançava sem piedade… Passado tanto tempo, passou a ser estranho, não se avistar o Comandante, sempre tão empolgado, juntos dos seus rapazes… Sempre tão presente e dedicado, ele começou a ser alvo da preocupação de todos! Também faltava a viatura… Aqui, começou a aflorar aos espíritos de todos, o pior!

Eis senão quando, Quim, em desassossego, não parava mais de procurar o Comandante Paulo… Já no rescaldo, fumegando, alguém avistou um monte de ferros no fundo da ravina e… o amado Comandante Paulo, já não incentivava e estimava cada um dos seus homens… O Comandante Paulo já não pertencia a este plano dos humanos. Voara nas asas da solidariedade e da entrega. Voara para outros mundos, menos cruéis. Entretanto a consternação e o abatimento, eram agora o sentimento mais acutilante, na alma de todos.

Bem sabemos, que o amor é o sentimento mais arriscado da vida. Mas, por outro lado, ninguém pode viver sem amar e ser amado. É o único sentimento puro, que vale a pena vivenciar. Às vezes, apresenta-se em forma de ódio e revolta… Herói há-os em todas áreas. Em cada momento. Em cada vida. Em cada situação, por mais silenciosa que esta se apresente. E o Comandante Paulo foi um exemplo de coerente fidelidade ao seu ideal de serviço. Entrega a um grande amor, à comunidade. Arriscou a vida pelos outros muitas vezes, e acabou por se entregar à sua causa, por completo!

Quando um Bombeiro sai do Quartel, nunca se sabe se voltará.

De facto, qual é a maior prova de dedicação de amor? Não será dar a vida pelo outro?


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