Eu e o meu amigo Dr. Mancelos fomos professores, durante vários anos, no ISCE (Instituto Superior de Ciências Educativas) de alunos do último ano da Licenciatura de Ensino- Professores de Ciências da Natureza-Matemática.
No derradeiro dia de aulas era da praxe celebrar a conclusão da licenciatura com esses alunos. Na hora de partir o bolo e dos brindes, o Dr. Mancelos aproximava-se e ofertava-me um mocho de porcelana. Cada ano de tamanho e grafismo diferentes. E todos, todos os anos se repetia a cena.
Achava insólita semelhante dádiva, mas nunca tive coragem de perguntar o porquê da mesma. Considerei que era uma deferência à amizade que mantínhamos e por aí me quedei. Hoje passados tantos anos, e, após o seu falecimento, resolvi esmiuçar o repetido acto. Era bom perceber o significado do mocho na história.
Como se sabe, o mocho é um predador nato e nocturno de pequeno porte com olhos amarelados, patas robustas, garras afiadas e plumagem acastanhada ponteada a branco. Possui os sentidos de audição e visão muito apurados e um voo ondulante, veloz e de baixa altitude.
Esta enigmática ave noturna sempre despertou curiosidade, admiração e significado nos humanos, e as suas características e forma de vida, únicas, alimentaram interpretações e superstições variadas. Destacam-se a sua relação com o mistério, a inteligência, a sabedoria, a previsão do futuro e a morte.
Em Portugal, existiam diferentes interpretações sobre o significado do mocho. Alguns veem -no como símbolo do infortúnio, seguindo a herança romana, enquanto outros o consideram um símbolo de sabedoria e sorte. Em algumas faculdades, o mocho é utilizado como emblema representativo.
Existem testemunhos escritos de historiadores que comparam o mocho às deusas gregas Ártemis, símbolo da lua, da caça e dos animais selvagens e a Atena, símbolo da inteligência e da sabedoria!
Muitos dizem que prevê o futuro. A previsão do futuro deriva da sua visão noturna excecional, percepcionando que ela pode ver o que os outros não podem. Por isso, essa capacidade de “ver além” e captar aspectos que não são visíveis aos olhos comuns, evoca a ideia de previsão e clarividência. Enfim a capacidade de enxergar além do imediato. [Para saber mais, merlim.pt e pime.pt]
Perante os inúmeros predicados dos mochos que dobram a mitologia e a espiritualidade, seria natural que fossem interpretes de várias fábulas, – um património imaterial do imaginário que nos legam importantes lições de vida e de moral.
Aqui fica uma delas, intitulada, O filósofo e o mocho [Livro Português das Fábulas de José Vale Moutinho]
Um filósofo escapou/Outrora duma cidade/Ao povo que o acossou,/À pedrada,/Depois da escola queimada,/Onde ensinava a verdade,/E num bosque se escondeu./Ali deu/Com pobre mocho/Velho, chocho,/E perseguido/Por um bando desabrido/De insolente passarada,/(…)/Não lhe poupando bicada./Depois de os terem enxotado,/Ao mesquinho perguntou/Porque era assim tão conspurcado?/«Porque sou /Capaz de ver/Durante a noite fechada/Quando eles não veem nada./Sim, por isso é que há-de ser»/O sábio diz: « mocho amigo!/O mesmo se deu comigo.»
Agora percebo o que o meu amigo Mancelos queria significar com as suas ofertas anuais. Se hoje fosse vivo dir-lhe-ia, como estava enganado : não sou o sabedor que ele pensava que eu era e tão pouco vejo mais além…quem me dera ser um inventor, um investigador, um inovador.
Daqui e agora, um obrigado grande pela sua generosidade Dr.Mancelos!…