O “Campeão das Províncias” publicou ontem uma reportagem sobre a vida no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, onde foi revelado que Nossa Senhora também terá aparecido à Irmã Lúcia na sua cela. “O Despertar” esteve presente neste trabalho jornalístico e descreve hoje aos nossos leitores como é a vida dentro daquele convento onde a Irmã Lúcia viveu 57 anos e deixou registos escritos que relatam as aparições.
Mal se fecha a porta principal do Carmelo de Santa Teresa (ou Carmelo de Coimbra) impera o silêncio e sente-se o característico frio das grandes construções. Aguarda-se no alocutário – sítio onde as Irmãs recebem as visitas e um dos poucos a que os de “cá de fora” têm acesso. A curiosidade pelo desconhecido, de imediato, apodera-se de nós. Os olhos examinam cada detalhe daquela sala. Pensa-se que provavelmente nunca passaremos daqui e será muito difícil cá voltar, por isso, aproveitemos. Um quadro de Lúcia, outro de Jesus e outro, ainda, de Nossa Senhora de Fátima adornam as paredes. No centro da sala repousa uma solitária mesa com uma toalha rendilhada sob a qual foi colocada uma imagem do Papa Francisco, cuidadosamente voltada para a porta, como quem diz “sejam bem-vindos”. À esquerda de quem entra encontra-se uma grade e atrás dela uma cortina, que não deixa ver o que está do outro lado. A cada minuto que passa, a curiosidade aguça um pouco mais.
Como se de um espetáculo se tratasse, as luzes acendem-se, a cortina abre e vemos Ana Sofia, uma das Irmãs Carmelitas. Atrás dela pode ler-se “Só Deus Basta”, uma frase de Teresa de Jesus.
De imediato, a conversa desenrola-se e Ana Sofia começa por explicar que as Carmelitas são Irmãs da vida contemplativa – dedicam-se à oração – e que o convento é o mundo delas, podendo sair para raras exceções, como votar, ir ao médico ou tratar de alguma documentação necessária.
Sendo que grande parte da vida de uma Carmelita se desenrola dentro daquele edifício, todas as Irmãs asseguram que possuem o essencial para viver lá dentro.
“Não precisamos de comprar muita coisa, porque as pessoas dão-nos, elas vêm aqui ter connosco, às vezes pedir orações, desabafar um bocadinho (…) e são essas pessoas que nos contactam e perguntam o que é que precisamos (…). Acabamos por viver assim, da providência, daquilo que as pessoas nos dão”, “não precisamos de grandes luxos, porque não precisamos de grandes coisas”, admitiu a Irmã.
Apesar disso, Ana Sofia diz que “não falta nada do que é essencial”, recordando os três votos que se aplicam a tudo nas suas vidas: pobreza, obediência e castidade.
O dia-a-dia de uma Carmelita
“O nosso dia começa muito cedo”, revelou entre risos a Irmã, e o início de cada hora é marcado pelo sino, a “voz de Deus”.
Às 06h00 levantam-se; às 06h20 fazem uma oração comunitária (laudes), na qual louvam pelo dia que começou, sendo à base de salmos, leitura bíblica e preces; a seguir realizam uma hora de oração pessoal, na qual estão todas juntas, mas em silêncio; e às 08h00 assistem à eucaristia, um dos pontos importantes do dia das Carmelitas, para logo de seguida rezarem a tércia. O pequeno-almoço tem lugar às 09h00 e depois disso seguem-se os trabalhos… “em silêncio e de preferência em solidão”, “para que seja também tempo de oração – espaço de encontro com Deus”, revelou Ana Sofia.
“Os trabalhos são muito variados, pois o convento é muito grande”, e “são rotativos, não são sempre os mesmos”, sendo que cada Irmã está incumbida de determinada tarefa. Tratam do jardim, cozinham e, como forma de subsistência, fazem trabalhos manuais, tais como terços, escapulários e alguns trabalhos de pintura. Às 12h00 há outra oração e às 12h30 é hora de almoçar, também em silêncio (exceto em dias de festa, como quando alguém faz anos, no Natal, na Páscoa ou nas solenidades – como a da Nossa Senhora do Carmo). “Quando falamos é sempre uma exceção”, admite a Irmã que está no convento há 24 anos.
Durante a refeição uma Irmã lê leituras religiosas para que durante a tomada do alimento corporal, também haja um alimento espiritual.
Lavar a loiça é, nesta hora, um trabalho partilhado por todas, a menos que haja uma Irmã mais debilitada, à qual essa tarefa já lhe seja difícil executar.
Depois do almoço é hora de recreio, onde se juntam, e existe um momento de partilha (aqui é-lhes permitido falar). A prioresa, que tem acesso à Internet, faz saber do que se passa no mundo, sendo que só interessa o fulcral da notícia. Por exemplo, não importa se estão 10 ou 1.000 pessoas infetadas pela Covid-19, mas sobretudo que as há – para que as Irmãs possam rezar por essas pessoas. Este momento também é aproveitado para conversar, rir e cantar.
Às 14h00 é realizada uma visita ao Santíssimo e depois é tempo de hora livre, sendo que às 15h00 dá-se a oração Noa. Até às 17h45 trabalham e depois faz-se o louvor vespertino.
O jantar, pelas 19h15, acontece antes do segundo recreio. Às 21h00 é a hora dos poetas, pelo que a oração litúrgica desse dia termina. Até às 22h00 as Irmãs estão na cela e segue-se a última oração do dia (com o intuito de preparar o amanhã).
É às 22h30 que o dia de uma monja se encerra.
Como ser uma Carmelita?
Neste momento, o convento é composto por 17 Carmelitas, dos 24 aos 88 anos, sendo que três Irmãs se encontram em formação. Todas aquelas que pretendem viver o dia-a-dia de uma Carmelita passam por um longo período de formação de nove anos. Este espaço de tempo é entendido como um período de namoro, durante o qual são aconselhadas, tentam perceber se gostam daquele estilo de vida, se se sentem bem e encaixadas ou, se por outro lado, isso não acontece.
Antes das candidatas entrarem para o lado de lá do convento, durante um ano, têm encontros mensais com as Irmãs, nos quais trocam ideias, leituras e são aconselhadas tanto a nível humano como espiritual. Durante esse ano é possível fazer uma espécie de “estágio”, por período não definido, para que as candidatas possam efetivamente viver o dia-a-dia de uma Carmelita.
Passado esse ano, se a candidata quiser prosseguir, aí sim, “já corta com todos os vínculos” do mundo lá fora e veste uma blusa branca e uma saia castanha, não tomando o hábito – este é um tempo de experiência e adaptação mais sério que se chama postulante, em que a candidata já assumiu o compromisso de “cortar com a vida que tinha lá fora”.
Se a candidata estiver feliz, ela própria pede para tomar o hábito, sendo que este pedido se faz por escrito, para que não haja dúvidas de que foi uma decisão tomada de livre e espontânea vontade.
Depois a comunidade manifesta o seu parecer sobre a candidata e, se tudo estiver conforme os trâmites, toma o hábito – um momento muito importante na vida de uma Carmelita, no qual veste um véu branco.
A partir daí inicia-se o noviciado, um período de formação mais intenso, com uma mestre de noviças que ajuda na formação interior da candidata, pondo-a a par de todas as regras, constituições, votos, entre outras questões importantes.
Depois desse tempo existem mais dois anos e se a pessoa estiver feliz pode fazer os primeiros votos, chamados de temporários, até completar o ciclo dos nove anos.
Quando finalizado o período de formação realiza-se a profissão solene, o dia do casamento, no qual se diz “sim” para sempre. Esta celebração é semelhante à de uma ordenação de sacerdócio e partir daí a candidata passa a usar um véu preto.
“É muito importante perceber se as pessoas têm vocação”, adiantou a Irmã Ana Sofia.
A consagração de uma Irmã depende de três vontades: da da própria pessoa, da de Deus e da da comunidade. Estas vontades têm de estar alinhadas, pois só assim a Irmã pode usar o véu preto, como uma verdadeira Carmelita.
Por norma, as Carmelitas só aceitam “candidatas” entre os 18 e os 40 anos, sem filhos e que nunca foram casadas, por acreditarem que sem estas características é difícil esquecer o que está para lá das paredes do convento.
“O único motivo que deve levar alguém a adotar este estilo de vida deve ser o amor a Deus e pela Humanidade”, pois “uma vocação, hoje, é um milagre”, sublinhou Ana Sofia.
“Falamos dos homens a Deus, os missionários falam de Deus aos homens. Somos as missionárias dos missionários”, concluiu.
A Irmã Lúcia e as aparições no Carmelo
A Irmã Lúcia passou grande parte da sua vida no Carmelo de Coimbra, onde acabou por falecer, a 13 de fevereiro de 2005, aos 97 anos. Foi aí que a vidente de Fátima viveu perto de seis décadas e, durante este período, a pedido da própria Igreja, terá escrito muito. De acordo com a Irmã Ana Sofia, escreveu vários diários, num total de 24 volumes, documentos esses a que tiveram acesso após a sua morte, aquando do início do processo de beatificação. A esses escritos, juntam-se ainda cerca de 11.000 cartas que a Irmã Lúcia escreveu a crentes de todo o mundo e que as Carmelitas conseguiram reunir, estando mesmo a criar um arquivo que pretendem disponibilizar depois a quem se dedica ao estudo desta temática.
“Assim como tivemos acesso às cartas [depois da morte de Lúcia], também tivemos acesso ao chamado diário, a que ela chama ‘O meu caminho’ e foi aí que soubemos que Nossa Senhora lhe apareceu algumas vezes aqui no Carmelo, nomeadamente na sua cela, e lhe deu mensagens concretas que ela precisava naquele momento”, conta.
As aparições de que fala não surpreenderam Ana Sofia que considera, aliás, que fazem “todo o sentido”, já que, como contava a própria Irmã Lúcia, Nossa Senhora lhe terá garantido, quando lhe anunciou que “Jacinta e Francisco iam para o céu”, que nunca a deixaria só.
Para todas as Irmãs, a cela de Lúcia sempre teve algo de especial, algo de “sobrenatural”, que nunca souberam explicar, mais ainda a partir do momento em que souberam que Nossa Senhora ali teria aparecido, chamando-lhe a sua “Capelinha das Aparições”.
A Irmã Ana Sofia conheceu-a bem, definindo-a como “uma pessoa extraordinária no ordinário da vida”, motivo pelo qual sempre viu Lúcia como um modelo de Carmelita a seguir. Recorda que antes de morrer, Lúcia olhou fixamente para todas as pessoas na cela. Ana Sofia diz que soube que naquele momento Nossa Senhora a veio “buscar”. Apesar da morte ser algo doloroso, a Irmã admite que aquela foi uma hora de alegria, na qual só apetecia cantar. Reinava “paz” e “serenidade” na cela, pois Lúcia partia “com a alegria de que cumpriu aquilo que devia ter feito”.
“Se eu morrer hoje, eu morro em paz”, costumava dizer Lúcia. E assim foi.
Algumas curiosidades sobre a vivência no Carmelo
As Irmãs podem ver a família e amigos uma vez por mês.
No convento não existem quaisquer objetos de luxo ou de vaidade.
O castanho das vestes das Carmelitas vem do monte Carmelo, em Israel.
Às Carmelitas é-lhes permitido terem algumas fotografias e outras recordações, mas em número reduzido.