Em “Tabacaria”, Fernando Pessoa escreveu “não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu” mas, atendendo ao significado literal deste trecho, ninguém invejaria ser, muito menos em época de pandemia, quem não tem o que comer ou mesmo onde ficar durante a noite.
No Pátio da Inquisição, em Coimbra, o repertório era vasto e variado. Começou com a música “Anjo Selvagem”. De seguida, tocou Ana Malhoa e a terceira canção já nem se ouviu.
A música vinha por detrás de um carro encardido. Depois um homem levantou-se e foi possível ver-se o aparelho – um pequeno rádio de bolso mal amanhado. Também estava na “fila” para levantar a sua refeição.
O que encaminharia aquelas pessoas ali? Se tivessem nascido noutro sítio e noutro lugar tudo seria diferente? Estaria um Albert Einstein, Nina Simone, Marie Curie, Zygmunt Bauman ou Pina Bausch por acolá? Se estivessem ainda teriam tempo de o mostrar ao mundo? São perguntas que nos assaltam e que para sempre ficarão sem resposta.
Extremamente organizados, os voluntários estavam do outro lado da porta do Centro Municipal de Integração Social. A refeição, naquele dia, era do restaurante “O Mimo”. Feijoada. Foi o que comeram naquela noite. Para muitos, a única refeição do dia. A ideia tem potencial – a Associação Académica de Coimbra (AAC), em parceria com a Integrar, decidiu adquirir mais de 200 refeições a restaurantes históricos da cidade e com forte ligação à comunidade estudantil para depois distribuir pela população mais pobre. Função dois em um, pois acabam por ajudar os restaurantes que, neste momento, estão a passar por um período difícil e também auxiliam os mais necessitados.
Iniciativas como esta, para Helena Lourinho, presidente da Associação Integrar, vêm sempre “em boa altura”. “Aqui o nosso objetivo é dar uma palavra, perguntar se está tudo bem. Se for preciso alguma coisa nós acabamos por fazer e ajudar”, disse. E fazem. E ajudam.
Todos os dias há refeições, inclusivamente ao fim de semana, e em cada dia está pelo Centro uma associação diferente. “A sociedade civil, pelo menos aqui em Coimbra, acaba por ser muito sensível a estas situações”, afirmou a presidente da Integrar, sublinhando que as pessoas se mostram bastante disponíveis para ajudar.
“Muito do nosso trabalho e da nossa entrega deve-se aos voluntários e aos donativos que nos são dados ao longo do tempo”, explicou.
O máximo de pessoas que aguardam na fila não passa de 42 ou 45. “Na nossa equipa de rua nós acompanhamos, neste momento, cerca de 42 utentes, que não são só indivíduos sem-abrigo. São pessoas que têm um quarto (…) que têm onde fazer a sua vida”, declarou Helena Lourinho.
Em tempo de pandemia o cenário piorou. “Tivemos pessoas que nunca tinham recorrido a serviço nenhum e que com esta dificuldade, com o desemprego, precisam de ajuda”, admitiu.
Na sede da Integrar também se encontra um baú, que foi colocado pela União de Freguesias de Coimbra, e todos os dias está cheio de bens essenciais, que vão sendo repostos.
“Os estudantes universitários são particularmente sensíveis a este drama, inclusivamente, já apoiámos alunos do ensino superior”, disse a presidente, recordando os períodos de crise que anteriormente assolaram o país.
João Assunção, presidente da AAC, disse que “a Associação Académica não se podia alhear desta necessidade e possibilidade de auxiliar num momento tão difícil para esta comunidade”.
“Compreendemos desde logo que os restaurantes típicos/históricos viviam muito da vida académica, da experiência que era receber os estudantes”, disse João Assunção, acrescentando que começou a perceber que esses mesmos restaurantes começaram a “definhar” porque tiveram de encerrar. “Contactámo-los para perceber se havia oportunidade de auxiliar, de comprar, para que depois pudéssemos distribuir por quem mais necessitasse”, contou.
A média de refeições por dia oferecidas pela AAC será de 40/45 e funcionará às quintas feiras, pelo menos, durante o período de confinamento, enquanto os restaurantes estiverem encerrados. Os estabelecimentos contemplados serão, além de “O Mimo”, “Escadas de Montarroio”, “O Cantinho dos Reis” e “A Taberna Casa Costa”.
“Desde a primeira hora nós desejámos adquirir as refeições, mas também tivemos respostas de restaurantes que quiseram oferecer algumas. Não quiseram apenas beneficiar economicamente desta ação, mas também ajudar na medida do possível. A resposta deles é unânime: gostariam de ajudar e oferecer tudo, mas não têm capacidade de o fazer neste momento”. Assim, acabaram por prometer refeições gratuitas quando os tempos soprarem a seu favor.
“Queremos essencialmente que estes restaurantes aguentem até que volte a normalidade para que nos possam receber como nos recebiam antes: de braços abertos, com um bom serviço e sempre muito amigos da comunidade estudantil”, rematou o presidente da AAC.
Por esta altura, às 22h40, já não se ouvia música nem ninguém a falar. Também já não havia fila. Essa fila invisível para muitos, mas que pode ser vista no Pátio da Inquisição pelas 21h00. Todos os dias.