26 de Abril de 2025 | Coimbra
PUBLICIDADE

JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

A teia de Penélope

10 de Março 2022

Destruída Troia e passados os sequentes dez anos em errância nos mares e terras, entre perigos e retenções, vindos de povos, homens e divindades, Ulisses, como vimos, regressou a casa, à sua Ítaca e reencontra Penélope.

Sem haver notícias dele durante esses dez longos anos, todos julgavam que tinha morrido e lamenta-se o próprio filho Telémaco de nada dele saber, considerando inclusive que tal é pior do que a morte, por não lhe ter podido prestar honras fúnebres (Odisseia I.234 sqq.). Só Penélope, a fiel esposa, continuava a esperá-lo, apesar de há cerca de dez anos não ter notícias dele e de todos lhe dizerem que estava morto, aconselhando-a a escolher novo marido. Assediada por pretendentes das ilhas e reinos próximos, inventava estratagemas para protelar o mais possível essa escolha, como é o caso do bem conhecido episódio da teia que tece de dia e desfaz de noite — ardil que está na origem da expressão teia de Penélope: perante o assédio que diariamente lhe faziam os Pretendentes, anuncia a rainha só escolher um deles, depois de tecer um manto fúnebre para o sogro, Laertes. Astuciosamente, porém, o avanço que a obra tinha durante o dia era desfeito pela calada da noite. Daí que “teia de Penélope” tenha passado à posteridade como símbolo de constância e fidelidade no amor. Mas também constância e insatisfação do criador literário na feitura da sua obra. Recorde-se o título do livro de Jacinto do Prado Coelho, Ao Contrário de Penélope (1976).

O reencontro de Ulisses com a mulher não foi, todavia, isento de escolhos. Chegado ao Palácio com o disfarce de mendigo, é maltratado pelos Pretendentes, sem ninguém detetar a dissimulação… Só o seu cão Argos, já muito velho e abandonado à entrada do palácio, o reconhece e, ao ver o dono, com alegria tenta erguer-se, mas morre com a emoção. Identifica-o também a velha ama Euricleia, ao lavar-lhe os pés como sinal de hospitalidade, por uma cicatriz numa perna, provocada por um acidente numa caçada ao javali, na sua juventude.

Além disso, Ulisses tem ainda de lutar com os Pretendentes pela posse do Palácio, com o auxílio do filho Telémaco e com a ajuda do fiel porqueiro Eumeu.

Para regressar à pátria, a sua desejada Ítaca, para voltar para junto da mulher que muito amava, Ulisses passou assim uma odisseia… E quantos de nós têm também ao longo da vida a sua odisseia, mais ou menos complexa, mais ou menos difícil. Ulisses simboliza afinal o homem que, ao longo da vida, muito sofreu, muito aprendeu sobre variados povos e, de espírito aberto a todas as curiosidades e sensações, tudo quis experimentar, como o prova o episódio das Sereias: avisado do poder do canto destas, ordenou aos companheiros que tapassem os ouvidos com cera e que, a ele, o atassem ao mastro e não o soltassem, mesmo que lhes pedisse com insistência. Assim experimentaria a força do canto, mas evitaria as consequências. Mas é também o homem dos mil expedientes que, para todas as situações, tem artes de arranjar uma saída e uma solução. É justificável, portanto, a afirmação de Miguel Torga, no Diário VI (p. 594 na edição em dois volumes, Coimbra, 1995), de que, na sua labuta diária, «o homem é realmente Ulisses, e a mulher Penélope».

Em conclusão, Ulisses é, como refere a abertura da Odisseia – ou ‘proposição’ e ‘invocação’, como se chamam estas partes iniciais dos poemas épicos – que aqui dou em tradução de Maria Helena da Rocha Pereira (vv.1-6)

………… o homem fértil em expedientes, que muito vagueou,

depois que destruiu a cidadela sagrada de Troia,

que viu as cidades de muitos homens e conheceu o seu espírito,

que padeceu, sobre as ondas, muitas dores no seu coração,

em luta pela vida e pelo regresso dos seus companheiros.

Mas a estes não pode salvá-los, a despeito dos seus esforços.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

Todos os direitos reservados Grupo Media Centro

Rua Adriano Lucas, 216 - Fracção D - Eiras 3020-430 Coimbra

Powered by DIGITAL RM