Apesar de considerar que “é ainda difícil para a mulher ser levada a sério quando quer implementar um negócio”, Magda Albergaria não cruzou os braços e, hoje, faz a diferença no mundo da moda. Em Janeiro deste ano, abriu, em Coimbra, a “UpYours – Circular Concept Store”, uma loja onde todos os artigos são feitos de materiais reutilizados. Além de peças de vestuário, a sustentabilidade está ainda presente em carteiras, sacos, bijuteria e decoração. O processo de criação do espaço surgiu de forma natural e pretende alertar a sociedade para a necessidade de combater o desperdício. Em declarações ao “O Despertar”, Magda Albergaria recorda como é que sua paixão pela moda se transformou num conceito diferenciador.
O Despertar [OD]: A moda pode e deve ser sinónimo de sustentabilidade?
Magda Albergaria [MA]: Pode ser usada de forma mais sustentável, sim. Sendo que nós precisamos de nos vestir para o nosso dia-a-dia, iremos ter sempre de consumir e criar algum resíduo nessa produção. Por isso, obrigatoriamente, totalmente sustentável nunca será, mas pode ser mais sustentável do que aquilo que é. Há muitas práticas que podem ser usadas de forma a que esta nossa necessidade tenha um impacto um bocadinho mais pequeno na pegada ambiental.
[OD]: É isso que acontece na UpYours. De que forma é que a sustentabilidade está presente neste projeto?
[MA]: A forma mais sustentável de nós praticarmos o dia-a-dia é, precisamente, usar o que já existe. É isso que nós fazemos: reaproveitar aquilo que já seria lixo. No caso do vestuário, temos uma linha de upcycling [reutilização], que se trata da criação de peças com origem noutras, em segunda mão, que iriam para contentores e aterros. As peças são transformadas, acrescidas de valor e voltam a entrar no mercado. Temos uma outra linha, que é uma produção de raíz, mas que é feita com dead stock [fim de stock] de fábricas. Isto é, os tecidos de restos de coleções. Nós reaproveitamos esses restos e produzimos numa escala muito mais pequena, porque só temos uma peça de cada artigo. Também temos bijuteria reciclada. Temos acessórios e carteiras feitas com amostras de tecidos de catálogos de decoração. Temos ainda uma pequena retrosaria com botões e rendas. Tudo isso eram produtos que iriam para o lixo e que nós reintroduzimos no mercado a preços mais simpáticos do que o que seria normal.
[OD]: Onde é que adquirem os tecidos?
[MA]: No caso das carteiras, é uma marca que trabalha connosco. Têm fornecedores e contactos com lojas e já lhes pedem esse material no final de cada coleção. No caso do vestuário, as peças de upcycling sou eu que as adquiro. Adquiro tanto em plataformas online de roupa em segunda mão, como em lojas de segunda mão, ou até diretamente ao cliente final. De forma a garantirmos a qualidade da matéria-prima, adquirimos estas peças ainda com a etiqueta, mesmo sendo em segunda mão. A retrosaria foi adquirida numa fábrica de roupa interior que fechou. De forma a poder recuperar algum dinheiro, vendeu estes artigos. Na parte dos tecidos também tenho alguns que vieram de uma fábrica que fechou e que estava a vender o stock. E de uma outra fábrica que, como ao final de cada coleção precisa de recuperar espaço no armazém, colocou um anúncio na internet a sugerir que quem quisesse podia ir buscar tudo o que era das peças anteriores.
[OD]: Se se der o caso de alguém querer doar materiais, também é possível?
[MA]: Também é possível, sim. No caso de doações, aceitamos desde que ainda seja possível aproveitar matéria-prima. Se for uma coisa que já esteja totalmente danificada, em que não se consiga aproveitar, aí nós recomendamos que seja encaminhada para um contentor têxtil.
A nível mais pessoal, como é que nasce este fascínio da Magda pela moda?
[MA]: Eu sou Designer de Moda de formação e já trabalho na indústria têxtil há 18 anos. Desde muito pequena, sempre gostei e nunca me imaginei a fazer mais nada que não algo ligado aos tecidos. Por isso, é muito natural, desde sempre. Não sei dizer quando é que começou. Já nasceu comigo.
[OD]: Como é que esta paixão se transforma, depois, num conceito como é a UpYours?
[MA]: Começou quando eu me integrei no mercado de trabalho, inicialmente, ainda em produções para outras empresas. Foi quando eu comecei a ter conhecimento de todo o desperdício que estava associado a produções, bem como das condições de trabalho menos favoráveis. Com isso tudo, eu fui-me desencantando um bocadinho com este mundo e fui perdendo o gosto por aquilo que estava a fazer. Tentei, então, perceber como é que eu poderia voltar a recuperar o fascínio pela moda. Como é que, de alguma forma, eu poderia usá-la para combater todas essas questões que me incomodavam. Decidi, assim, tornar-me um agente diferenciador. Comecei a dar aulas e formação na área têxtil. Entretanto, também colaborei com uma marca de vestuário inclusivo que tem uma vertente sustentável na sua produção, tanto a nível ambiental como social. A partir daí, todas as coisas se ligaram umas às outras e, naturalmente, também surgiu esta vontade de eu própria seguir com um projeto que fizesse a diferença.
[OD]: Que critérios ditaram a escolha de Coimbra para a abertura deste espaço físico?
[MA]: Eu sou de Coimbra e optei por esta via por questões de proximidade à minha residência. O espaço físico é, no entanto, apenas isso mesmo. A minha ideia é ser para o mundo e, por isso, onde é que eu estou não é muito limitador ou algo que defina o meu projeto ou o meu público.
[OD]: Sente que há, cada vez mais, uma preocupação por parte dos criadores em associar a moda à sustentabilidade?
[MA]: Claro que sim. Até porque, neste momento, já é uma necessidade. É mesmo preciso começar a mudar mentalidades e formas de trabalho. Temos de pensar no futuro que nós deixamos às próximas gerações e, sendo o setor da moda a segunda indústria mais poluente do mundo, acho que tornar a indústria têxtil mais sustentável já não é só uma tendência, ou uma vontade. É mesmo uma necessidade que tem de ser aplicada.
[OD]: Quem procura também já tem essa consciência?
[MA]: Sim. Neste momento, acho que grande parte da população mais jovem já tem mais consciência, até porque vai ser aquela que vai viver com a realidade do impacto ambiental. Acaba por ter um papel também mais decisivo nas transformações que serão feitas hoje e que terão impacto no futuro.
[OD]: A moda sustentável não é sinónimo de menor qualidade?
[MA]: Pelo contrário. A moda sustentável é sinónimo de mais qualidade. Basta vermos um bocadinho do que é o fast fashion e o ultra fast fashion [produções rápidas], em que para serem baratas ou demasiado baratas, as peças tornam-se descartáveis. Uma pessoa usa-as uma vez e já não têm sequer qualidade para ser reaproveitadas. Tudo o que é sustentável é feito com matéria-prima de maior qualidade. Tudo isto tem um impacto no preço e, por isso, o custo também se torna um bocadinho mais elevado, mas compensa porque é uma peça que vai durar muitos anos em relação àquelas que quase são descartáveis.
[OD]: Sente que há dificuldades associadas a ser uma mulher empreendedora neste ramo?
[MA]: Eu acho que há dificuldades no empreendedorismo feminino em todos os setores. Basta ser mulher para ter, desde logo, alguns entraves. Muitas vezes, interligados com a educação que ainda temos, muito machista, em que só quem é homem é que sabe gerir; só quem é homem é que sabe investir; e as mulheres só querem é gastar dinheiro. Este ainda é um estigma muito grande na nossa sociedade, infelizmente, e, por isso, nós acabamos por encontrar algumas dificuldades em ser levadas a sério, em sermos vistas como alguém que sabe o que é que está a fazer. Eu já senti isso de quererem saber se eu não tenho um homem por trás de mim, que saiba o que é que está a fazer, para me indicar.
[OD]: Continua, por isso, a ser importante assinalar uma data como o Dia Internacional da Mulher?
[MA]: Se o Dia Internacional da Mulher continua a ser preciso, é sinal de que ainda temos muito caminho pela frente. O homem não precisa de ter um dia do homem. Se nós ainda precisamos de um dia para lembrar que temos os mesmos direitos, penso que, só aí, já está provado que continuamos a ter de lutar.