27 de Dezembro de 2025 | Coimbra
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Uma escola pode ser um mundo de possibilidades

23 de Dezembro 2025

Fiz a primária numa escola pública de uma freguesia rural do concelho de Coimbra. Hoje área suburbana e, de certa forma, descaracterizada. O edifício terá sido construído ainda no Estado Novo e a sua arquitectura padronizada é fácil de reconhecer pelo país.

Quatro salas de aula (solução bilateral), com pátios e áreas administrativas no rés-do-chão. Gostava especialmente do espaço exterior: dois plátanos enormes – um deles plantado pelo meu pai e colegas. Não raras vezes trepávamos o tronco até uma bifurcação que nos permitia ficar ali sentados a comer o lanche. Lembro-me que uma vez caí de costas e fiquei sem ar, mas recuperei rapidamente e voltei àquele assento de madeira, que parecia ter sido feito à medida dos nossos corpos pequeninos. Os muros largos de pedra calcária e ar tosco também eram lugar de brincadeira. As crianças adoravam trepar e meter-se em pequenas aventuras. Tínhamos uma certa liberdade que hoje não têm: podíamos sair da escola. Muitas vezes aproveitávamos essa possibilidade e íamos a uma fábrica metalúrgica que existia, em frente, pedir esferas para jogar ao berlinde. Também aproveitávamos para ir comprar um pacote de batatas fritas, ou um saquinho de quatro bolachas recheadas à loja da esquina – da senhora Irene, que muitas vezes anotava a despesa na conta dos nossos avós. Enfim, era uma escola de que guardo boas memórias, apesar de ter chegado a levar quatro reguadas na quarta classe por não ter feito os trabalhos de casa. O ensino não era péssimo, nem extraordinário. Mas a escola estava cheia de crianças.

 

Uma escola cheia de crianças livres

As turmas eram grandes e a esmagadora maioria dos meninos da freguesia frequentavam-na. A diversidade era inexistente. Éramos todos do mesmo lugar e não havia estrangeiros. E por estrangeiros entendia-se, por exemplo, crianças da freguesia ao lado. Toda a gente se conhecia há gerações. A experiência cultural – apesar de fazermos muitas visitas de estudo a Lisboa, era reduzida. Éramos todos brancos, portugueses e do Baixo Mondego. Uma monotonia que nos fazia acreditar que o mundo era assim, como o conhecíamos. Isso terá condicionado algumas pessoas, acredito. No entanto, sentíamo-nos livres e podíamos ir para casa a pé, sem adultos. O caminho era uma aventura e, normalmente, a casa que nos esperava era a dos avós. Não havia actividades extra na escola, mas existia uma rede familiar de apoio que nos permitia ir cedo para casa.  Era muito prático para os nossos pais, que faziam parte da geração que deixou de trabalhar na agricultura e passou a trabalhar no sector terciário: muitos trabalhavam em Coimbra, outros em algumas fábricas locais. Estamos a falar da transição dos anos 70 para os anos 80 (pós 25 de Abril), em que a mulher entra no mercado de trabalho e assume as tarefas domésticas como uma segunda jornada de trabalho, e já não consegue acompanhar os filhos durante o dia.

 

Quando a escola é um espaço de construção colectiva

A minha antiga escola fica muito perto da casa dos meus pais e, muitas vezes, nas minhas caminhadas ou passeios de bicicleta, observo-a. Um dos plátanos foi arrancado para construir um campo de futebol. Mas o outro continua enorme e imponente. A senhora Irene já morreu e as crianças já não podem sair da escola para buscar esferas. Também não andam em cima dos muros, que têm rede para não fugirem. São tempos diferentes, mas vejo mudanças positivas, graças ao empenho dos pais. E faz toda a diferença quando as pessoas se mobilizam para criar mais, construir mais, partilhar mais. Não que os nossos pais não se empenhassem. Pelo contrário: tinham muito mais actividades colectivas. Faziam parte de associações e colectividade locais: filarmónica, teatro, grupo folclórico, futebol; mas eram menos absorvidas pelo núcleo familiar. A comunidade tinha outro peso. Hoje é diferente, as pessoas são mais centradas no seu núcleo familiar mais próximo e é natural que as actividades em que se envolvem sejam as relacionadas com os filhos. Isto, numa sociedade individualista – em que gastar tempo com uma causa não remunerada, parece uma excentricidade – ver um conjunto de pais construírem comunidade, através da escola, é de louvar. E é com gosto que vejo uma dinâmica muito “gira” na minha antiga escola: as crianças têm uma horta produtiva, uma casinha improvisada com todos os matérias de cozinha, muitas trotinetes e bicicletas e vários canteiros com flores. Vê-se que a escola está cuidada com poucos recursos, mas muito trabalho voluntário dos pais. Imagino que passem horas a limpar, a improvisar estruturas para que os filhos cresçam mais activas e próximos da natureza. Afinal, estas crianças já não vão com os avós para o campo como nós íamos. Há sempre decorações temáticas em épocas especiais do ano. E é assim que se constroem redes sociais. Os meninos/as, e os pais, já não são todos naturais da freguesia. E isso é muito enriquecedor: permite-lhe contactar, desde cedo, com outras culturas, outros povos, outras línguas.

A minha aldeia abriu-se à imigração, uma vez que devido à crise da habitação, cada vez mais pessoas procuram casa longe do centro da cidade (onde os preços estão mais sujeitos à especulação). Coimbra está a crescer para a periferia e a suburbanização é um fenómeno irreversível.

 

A importância de acreditar na escola pública e saber lutar por ela

Mas há poucas crianças. Mesmo com a chegada de alguns imigrantes. O que será resultado de, por um lado, procura de respostas privadas para a educação dos filhos, transferência para escolas mais perto do local de trabalho dos pais e diminuição da natalidade. É um problema que pode colocar em causa a médio e longo prazo a sustentabilidade desta escola, como já aconteceu com tantas outras do país. E é uma pena que alguns pais não valorizem o ensino público e lutem por melhorá-lo. Afinal, muitos conseguiram alguma mobilidade social graças à escola pública. Bem sei que há quem – devido aos horários da escola pública, não tenha alternativa e precise recorrer aos privados. Mas também sei que há quem considere que – colocando os filhos no ensino privado, lhes está a dar uma melhor formação. Se está a dar melhor formação, não creio. Há muito boas escolas públicas em Coimbra. Mais actividades, melhores condições das instalações e até alimentação, é possível. Mas, há também muitos pais que – quando colocam os filhos no ensino privado, o fazem para definir o estrato social a que querem que os filhos pertençam. Muitas vezes desprezando a sua origem social. Saúdo os pais que resistem e continuam a acreditar num ensino público gratuito e de qualidade para todas as crianças, independentemente da sua condição social. Os pais que dedicam horas a melhorar a escola pública – permitindo aos filhos crescerem num ambiente diverso e com sentido de comunidade. Que a escola seja espaço de partilha, de agregação, de diversidade, onde as crianças guardem tão boas memórias como eu.

 

Ana Rajado
»» [Reportagem da edição impressa no “O Despertar” de 23/12/2025]


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