O comboio é, às vezes, “um fascínio tranquilo, outras uma aventura imaginativa, outras uma melancolia da separação e do inatingível”. Com esta frase do Pedro Mexia, veem-me à ideia as imagens dos comboios que via passar no cimo da serra, sentado na varanda da casa da minha avó: comboios correio, comboios de mercadorias, comboios da noite com as suas luzes fugidias. E como eu gostaria de ir naqueles comboios. Para mim, um impossível mito, um clima melodramático. Descobria naqueles comboios a “viagem, fuga, fadiga, sob um ângulo de distração e esquecimento”, ou “sonos em movimento”, nas palavras de Agustina, através de cidades, bosques e descampados.
Recordo as viagens que fazia, desde muito pequeno, pela linha da Beira Alta, e, muito do que foi dito, estava lá, naqueles comboios. Os assentos em madeira sobre o comprido, as janelas toscas que eu abria, contra a vontade dos meus pais, para poder colocar a cabeça de fora e ver a máquina, lá à frente, a puxar, vagarosamente, todas as carruagens. O seu esforço fazia deitar aquele fumo intenso e negro e faúlhas que, ansiosamente, aguardava que me passassem perto. Tudo reminiscências imorredoras. As pontes altas, de meter medo, que o comboio tinha de atravessar, os túneis escurecendo a carruagem, a linha correndo por entre morros e barrancos, elevados e estreitos, estão bem sinalizados nas minhas memórias. Tudo isto me divertia, ou, arrepiava, durante a viagem, um misto de medos e de aventuras.
A paragem em todas as estações e apeadeiros era, para mim, um mistério. Umas vezes rápidas, outras vezes mais morosas. No primeiro caso, serviam apenas para a subida e descida de passageiros, no segundo, para encher de água o depósito da máquina ou, então, carregar lenha para alimentar a sua fornalha.
As pessoas entravam e saíam com os seus cabazes e malas ou as compras feitas nas feiras das redondezas da estação. Alguns faziam-se acompanhar das suas merendas comendo em cima dos joelhos, protegidos por um guardanapo branco, por vezes, de linho, a servir de toalha. O pão preto, como eu lhe chamava, por ser de centeio, o chouriço, o presunto, tudo cortado de forma genial com uma «navalhinha», azeitonas também e o indispensável garrafão de vinho ou uma garrafa, para os mais moderados, eram vulgata.
Apreciava os pregões pronunciados nalgumas estações. Quase sempre mulheres, divulgavam produtos regionais e as janelas do comboio abriam-se para os comprar. A «apregoadora», por vezes, em correria louca, tentava durante o tempo da paragem vender o mais que pudesse. Ainda recordo, por exemplo, “Arrofadas de Coimbra e barricas de ovos-moles ” e “água do Luso fresquinha” que vinha em cantarinhas de barro.
O homem da gaita e das bandeirinhas, dando a partida ou a chegada, recreava-me e tinha inveja do seu poder, – fazer parar e andar o comboio. Havia, ainda, outro enigma, o barulho cadenciado das rodas nos carris, que a sabedoria popular dizia significar “pouca terra pouca terra” – interminavelmente. Era uma melodia que se metia pelos ouvidos, como se fosse uma partitura de Verdi. E eu, atónito, perguntava, ao meu pai, porque era assim. Ele explicava que o nome foi assim posto porque o comboio andava devagar.
Ficava com pena de sair do comboio, mas, salvava-me a alegria de abraçar os meus avós à espera na estação. No regresso, lá vinha a tristeza de me separar deles. Ficava “o intangível sono e sonho em movimento”.
Mais tarde, jovem-adulto, voltei a frequentar estes comboios da linha da Beira Alta, pois estudava na Universidade de Coimbra e os meus familiares viviam na cidade da Guarda e arredores. O comboio continuou a fazer parte integrante da minha vida.
No final das férias do Natal e Páscoa era o retorno a Coimbra de grande parte dos estudantes das Beiras para iniciar as aulas. Centenas utilizavam-no, tal como eu. Nesses dias o comboio tinha muito mais carruagens e enchia-se à medida que passava as estações. Eram dezenas de raparigas e rapazes que estavam em cada estação, esperando, carregados com as suas malas e sacos, neles acarretando alguns mantimentos que davam para os primeiros dias. Eram as guloseimas, preferidas de cada um, feitas com enlevo pela mãe ou pela avó. Na altura, aproveitava-se tudo o que vinha de casa. A vida era difícil e os pais, muitos deles, lavradores, trabalhavam de manhã ao por do sol, no amanho das terras, para poderem ter os filhos na Universidade e, mais tarde, serem «doutores».
Era a entrada na Guarda, Celorico, Fornos, e tantas outras estações e apeadeiros, que apinhavam o comboio de juventude irreverente. Falava-se muito e de tudo, o barulho era ensurdecedor, era o reencontro. Os risos contagiantes: Contavam-se anedotas e as peripécias das férias. Alguns faziam previsões para o novo semestre e respectivos exames. Os mais cultos, discutiam a política do pais, chamavam nomes pouco abonáveis ao ditador, à PIDE e suas práticas. Muitos amigos se fizeram nessas entradas e saídas, quantas cumplicidades, quantos olhares se trocavam, namoros ali nasciam e casamentos floresciam.
Como poderei esquecer os comboios. A sua vida faz parte da minha, das minhas memórias.
Hoje, ainda, gosto muito de andar neles. Percorri quase todas as linhas icónicas deste país, por exemplo, a do Corgo, do Douro e do Tua.
Entre o rio e as serras, a viagem torna-se inesquecível, mesmo que repetida mil vezes. A paisagem monumental dos vinhedos e olivais ou os alcantis ciclópicos que, aqui e ali, comprimem as margens multiplicam-se na infinidade de olhares e sensações que despertam em cada recanto. Uma paisagem assim envolve-nos os sentidos e a imaginação Correndo entre as fragas da encosta e o rio, o caminho-de-ferro desvenda a épica do lugar. Não é apenas o que os olhos vêm que nos surpreende. É a nossa própria meditação, embalada no rumor dos carris, que mistura sensações e memórias, busca a compreensão do que não se vê mas se imagina em cada trecho da paisagem. [adaptado de Gaspar Martins Pereira].
Vá ver. Ande de comboio e sonhe.