Há muitos anos que a Praia do Pedrógão é o meu refúgio. O Mar, aquele mar, a sua raiva ou a sua bonança, são para mim silêncio escondido. Ao olhar mais além vejo o seu azul, um azul igual aos olhos das Marias que aqui habitavam. As ondas, umas vezes medonhas, outras calmas, espraiando-se na areia.
O regresso dos mitos, a origem dos mitos, prende-se com a capacidade de imaginar e de efabular a vida. O Pedrógão precisa destes condimentos, já que nasceu, cresceu e sobreviveu pelas mil matizes do seu mar, e porque outros imaginários se entrecruzaram com a sua vida: a faixa de areias brancas, os “olhos de água”, as vinhas de areia, a leiva fecunda, o pinhal semeado por mãos de reis e de pobres, as pedras, as espumas, as vidas e as artes dos pescadores.
O mar do Pedrógão também foi tudo isto, e também teve, os seus encantamentos e os seus mitos literários, pela pena de vários escritores, como, Adelaide Félix e Aquilino Ribeiro. Os seus livros estão salpicadas de mar, cheiram a maresia!
Desde o princípio, o Mar foi a paisagem quotidiana do Pedrógão, impregnando, profundamente, a psicologia, as tradições, a literatura, a arte, e até a gastronomia, das suas gentes ou dos seus amigos.
O mar exercitou sempre o fascínio, mas também o medo e a desconfiança, do povo do Pedrógão. O mar foi sempre um enigma. Foi, por esse facto, como afirma o historiador francês Alain Corbin, que tarde os europeus descobriram o mar como uma fonte de emoções, propício a banhos, viagens de lazer e tratamentos medicinais. O mar era, muitas vezes, visto, como coisa do diabo. Ele era a encarnação do Leviatã, o monstro bíblico que morava no mar. Dante Alighieri (1265-1321), ao descrever o inferno, na Divina Comédia, alude à repulsa causada pelas águas.
“Esta tarde, o Sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode, iluminando o espaço e a água cor de chumbo.”
Muitos outros escritores, para além de Raul Brandão, se inspiraram no mar, no mar do Pedrógão ou noutro mar qualquer: Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, José Loureiro Botas, Manuel Alegre, Ramalho Urtigão, para referir só alguns.
“Chegam os dias de Inverno, e aquela voz colérica, que ouço desde pequeno, engrossa e mete medo. É um rebramir que acaba sempre na mesma nota profunda – u-u-u, que entra pela terra e pelas almas dentro. Andam enrodilhados no ar farrapos de nuvens e espuma, que o vento cospe para o alto. Céu desordenado e negro como as águas.”
Para Ramalho Ortigão, o mar é um mundo de fantasia, de vida e de magia. O escritor, com o seu talento, descreve-nos muitos fenómenos que fomos observando ao longo dos anos, no Pedrógão e que nos fascinavam. Às vezes, sentados nas dunas, passávamos horas e horas, em noites serenas, a olhá-los. Por exemplo, o fenómeno da fosforescência, produzido por “ animálculos microscópicos que habitam o mar ” e “ produzido por um infusório luminoso chamado noctiluca míliaris, de cuja espécie existem vinte e cinco mil indivíduos em cada trinta centímetros cúbicos de água!”
.Os pescadores eram homens inteiros, feitos de músculos rijos crestados pelo mar que praticavam a arte xávega, remando aqueles barcos pesados sempre com o perigo da entrada e da saída.
As suas mulheres (As Marias´s) tinham a labuta da casa, e eram ainda “vendedeiras” de peixe e “ trabalhadeiras”, na horta, no pedrulho e em tantas coisas mais. Havia um desempenho diferenciado entre os papéis feminino/masculino, no quadro da organização familiar e comunitária dos pescadores do Pedrógão.
Visualizámos, muitas vezes, estas mulheres sempre em movimento. Ouvíamo-las e víamo-las através dos pregões, das bulhas, dos choros, do passo miúdo descalço em corrida permanente. Víamos que eram grandes parideiras de filhos. Eram muito bonitas quando solteiras; depois de casadas a mocidade durava-lhes o que duram as rosas. Esboroava-se, como as pétalas.
Sempre que havia perigo para os homens no mar, lá estavam elas, de saias pela cabeça, gritando anh! anh!…de aflição, gemendo, chorando, implorando à Nossa Senhora dos Aflitos.
O trabalho doméstico não tinha muita importância para as mulheres. Não podiam gastar muito tempo nele, já que era preciso ir vender o peixe, ou andar a dias, ou ir ao pedrulho, para arranjar o sustento para os filhos. Eram ocupações relativamente simples, que não consumiam muito tempo, e geralmente partilhadas entre os membros da casa, incluindo as crianças, que muitas vezes tinham de faltar à escola para ajudar nas lides. A maior parte das vezes comiam sopa, pão e sardinhas assadas quando as havia. Antigamente as pessoas pobres usavam a mesma roupa todos os dias, pois tinham apenas uma muda de roupa para os domingos e dias de festa, quando tinham. As casas eram pequenas e muito pobres, e o mobiliário, se algum havia, era simples, exigindo poucos cuidados de decoração ou limpeza.
Lembramo-nos das mulheres do Pedrógão terem uma “língua afiada”, de um poder expressivo inigualável, sempre que se zangavam: quando iam buscar os homens à taberna, quando apregoavam o peixe, quando falavam ao mesmo tempo e gesticulavam, quando gritavam se viam os homens em risco no mar, ou quando contavam a sua vida de “burras de carga” e de miséria.
Quando duas mulheres bulhavam ficavam, uma em frente da outra, com as mãos na cintura, bamboleando-se. Depois, descompunham-se e engalfinhavam-se, arrepelavam-se… Era um momento inolvidável, um momento único de teatro trágico, cheio de exclamações, de gestos imprevistos, de movimentos de dança, que uma vida de animal explorado, traz, de repente, à tona.
A Xávega foi a arte a que se entregaram estes homens e mulheres.
Aqui lhes deixo, a todas, o meu reconhecimento
Maria Do Mar
I
Maria é nome que vem da Praia,
Maria nasceu do Mar.
Maria é barco a vogar,
Na onda que se espraia,
E de azul desmaia,
Nos areais do Pedrógão pescador,
Outrora presente hoje mais distante.
Mas ó Maria, o distante bastante,
Para ainda o amares,
Nele pensares,
E também o cantares,
Com alma, memória e fervor.
II
E que cantas tu, Maria?
As vivências e as lembranças,
Das casas feitas de pobreza,
Que tu privavas, por dentro, sem surpresa?
Os homens e as mulheres tisnados pela maresia,
Lutando para sobreviver o dia-a-dia?
A beleza infinita dos areais sem par?
O vento sussurrante que entrava pelas ruas do lugar?
Pois é, Maria do Mar, tu cantas tudo: as esperanças,
E também as desesperanças.
Sabes, és como o pássaro dunar,
Que trilha a melodia do lar.
O ninho, pertença e lugar.