Já ouvi dizer a vários historiadores e sociólogos que um bairro é (era) uma unidade funcional que gera(va) sentimentos de confiança e princípios de parecença comuns, entre os seus habitantes, ofertando-lhes a possibilidades de se associarem numa comunidade local. O bairro onde moro era assim quando o conheci, hoje o que é?
Na minha modesta opinião, várias transformações concorreram para a sua evolução histórica, social e urbana, caracterizando-se, presentemente, como um novo perfil de sítio urbano. Ostenta, como muitos outros, claras singularidades de uma região urbanizada em consequência de diversos interesses ou mudanças sociais profundas.
Debrucemo-nos, agora, sobre as mercearias do bairro, assunto central do nosso artigo.
A primeira mercearia original, bairrista, foi fundada em 1965. Era um pequeno e modesto estabelecimento, pertencente à família João dos Santos. Possuía uma riqueza intrínseca pelos serviços comunitários que fornecia. Ainda existia o rol, o livro dos fiados e a distribuição porta a porta, preceitos e normas que vigoravam nas mercearias, gregárias.
A nota de registo foi efetuada em 19 de novembro de 1965 na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra. O Grémio dos Retalhistas de Mercearia do Centro, certificou a inscrição da firma João dos Santos com o n.º 23523, por deliberação tomada na reunião de direção de 26 de novembro de 1965, e, atribuiu-lhe a categoria de retalhista de mercearias com estabelecimento público. Neste contexto, mercearias, vinhos a retalho, louças e panos poderiam ser transaccionados naquele espaço, que se apresentava exíguo. O Grémio Concelhio dos Comerciantes de Artigos de Escritórios, Tabacaria e Quinquilharias de Coimbra, em abril de 1968, concede a necessária autorização para o estabelecimento sito em Monte Formoso – Ingote – Coimbra, poder transacionar mercearia, vinhos, aguardentes, produtos hortícolas, tabacos, artigos de papelaria, plásticos, confeitaria, detergentes, águas minerais, refrigerantes, salgados e fumados, louças, alumínios, uma gama de produtos diversificada que bem caracterizava este tipo de estabelecimentos, adicionando-lhes a disponibilidades de venda. Aparece, pela primeira vez, o nome do sítio Monte Formoso, o que não deixa de ser curioso e necessitaria de conhecimento e aprofundamento teórico. A expansão da construção civil no monte e as magníficas paisagens que os seus habitantes usufruíam das suas janelas e varandas, albergando, bem perto, o Mondego a serpentear pelo seu vale, estará ligada à designação?
Diz o Senhor João em entrevista amavelmente concedida ao colunista: “…em 1965 era uma casa pequena, tipo empresa familiar, onde eu e a esposa, conhecida por D. São, trabalhávamos arduamente. A mercearia chamava-se Ingote, para abarcar os três Ingotes: o de Cima, o do Meio e o de Baixo. Habitantes fixos eram raros, mas despontava em força a construção civil, com os seus inúmeros trabalhadores. Eu vendia para esse pessoal, de várias empresas que aqui laboravam, vinhos e petiscos”.
Continua o Senhor João o seu discurso: “… a minha, era a única casa quando começaram a chegar os habitantes em 1969, lembro-me muito bem da D. Helena cabeleireira ter sido das primeiras a chegar… foi também das minhas primeiras clientes. Nessa altura, eu ia a casa das pessoas distribuir o pão e o leite, porta a porta, por volta das 5 ou 6 da manhã. Às 8 horas abria a porta e as pessoas começavam a vir abastecer-se.”… “Eu tinha hortaliças, peixe e carne frescas.” E depois de discorrer, entusiasmado, sobre muitas outras coisas, que não cabem num artigo desta natureza, ainda nos diz… “eu tinha uma caixa do correio e vendia selos aos meus clientes”.
“A fase difícil veio a seguir”, diz o Senhor João com ar amargurado, “pois começaram a abrir outras casas, um vai vem de fechos e aberturas… fecharam e eu fiquei.” Qual o segredo para se manter aberto, indaguei eu? “A estrutura familiar, o acompanhar a atualização, muitas horas de trabalho, cultivar a prestabilidade aos clientes, população e fornecedores.” O Senhor João continua entusiasmado: “Se reparar, presentemente, tem outro nome, onde a palavra Marçano impera, suponho, não tenho certezas, de que foi o Miguel, o meu filho, em homenagem ao pai, que colocou este nome”.
Aqui, o Senhor João, que foi marçano na cidade do Porto desde pequeno, fica com a voz «tremelicada» de emoção –, e lá vai dizendo: “trabalhava-se desde muito novo, a vida era complicada… muita pobreza e às vezes labuta sem horas.”
O certo é que, com outro nome, com a concorrência de grandes superfícies, e outras lojas no local, foi sobrevivendo. E eu não tenho dúvidas –, o que o fará manter aberto será a sua integração na comunidade e a prestação de serviços e afabilidades que combatam a sociabilidade do isolamento.
Pela minha parte, Bem-haja SENHOR JOÃO!…