Hoje é dia de Natal. Mais uma quadra festiva no Maiombe. Não é fácil estar aqui neste dia. Olha-se para a data, olha-se para a vida, olha-se para o espelho das coisas, e tudo parece pequeno e pouco nítido. Perguntamos à nossa imagem simétrica, para onde vamos, donde vimos, o que somos, o que poderíamos ter sido, onde parámos fora do tempo. Vemo-nos exilados e compactados pela mata densa, mas também aí, o Natal é incontornável, é Natal. Queremos ver luzes, alegria, solidariedade, tudo maior, muito maior, que as nossas tristezas e solidões!…
Queiramos ou não, gostemos ou não, o Natal é uma festa sempre atraente, porque é a celebração da vida e porque, de um modo ou de outro, todos queremos viver. Nós não pretendemos só sair daqui vivos, pretendemos (re) conquistar a vida que nos quiseram tirar, a vida, a vida cheia e feliz!
Antes de os cristãos celebrarem, a 25 de Dezembro, o nascimento de Jesus Cristo, já os romanos celebravam a festa da invencibilidade do Sol – o mesmo é dizer, da invencibilidade da luz, da vida. Após aquilo que parecia um caminho outonal para o desaparecimento, eis que o sol voltava a erguer-se, os dias recomeçavam a crescer e a ganhar tempo à noite, a vida afirmava-se sobre a morte, a esperança renascia.
É isso que todos vamos fazer, comemorar a invencibilidade da luz, da vida, aqui no alto Maiombe.
É preciso cumprir a tradição, como em casa dos nossos pais, nas profanidades e carismas, nos ritos, nos costumes, é preciso recordar tudo, sonhar tudo. Assim fizemos!…
É preciso evocar tudo, mesmo os meninos que já fomos. Assim fizemos!… Como escrevia, Álvaro Feijó, “muitos teriam nascido numa cama de folhelho, num pardieiro velho”.
Agora que cresceram, já são os meninos que não tiveram nem magos a adorá-los, nem vacas a aquecê-los.
São aqueles que têm tido muitos Reis da Judeia a persegui-los e “coroas de baionetas postas até ao fundo do seu corpo”.
Enquanto as comemorações natalícias prosseguem em paz por todo quartel, já que os guerrilheiros também quiseram fazer Natal, há quem tenha ceado amargura salgada, porventura vinda da lágrima que caiu no leite achocolatado da ração de combate.
Efetivamente, há grupos de homens emboscados a confraternizar e a comemorar em sonhos, pois às sete, na mata, já se dorme. Porém, hoje, o Deus Menino, aquele que teve coroas de baionetas, quis acordá-los para lhes dizer que era Natal. Uma chuvada diluviana caiu generosamente dos céus. Acordaram e beberam; foram bebedeiras de água para temperar o bacalhau.
E eu também sonhei. Levanto as mãos para o alto e caem nelas milhões de moléculas de água que transportam as filhós da minha avó, as rabanadas e o leite com chocolate.
Baixo as mãos para comer e reparo que estão vazias de molhadas. Levanto-me e vou esvaziar o vazio de lá longe. Acordo manhã além com uns tiros vindos do Maiombe. Morreu o Zé. Afinal não houve Natal.
[Este texto foi selecionado e faz parte do Livro Natal em Palavras, Editora Planeta, Brasil, Portugal, 2018]