4 de Dezembro de 2024 | Coimbra
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ANTÓNIO INÁCIO NOGUEIRA

TESTEMUNHOS: A senhora dos gatos

20 de Setembro 2018

Vivo há muitos anos no mesmo bairro. Ainda me recordo dos silêncios do princípio e da paisagem deslumbrante sobre o Mondego que lobrigava da minha varanda.

Quase tudo se conhecia a quase todos.

Hoje entro e saio do elevador e encontro, em cada dia, a cada hora, gente diferente, a quem se dá o «bom dia» e se obtém ou não resposta, consoante os humores do parceiro de subida ou descida, – para quê «dar a saudação» se eu não conheço este gajo de lado nenhum –, pensará para si o meu companheiro de viagem.

Na rua passam, a meu lado, pessoas que nunca vi, e, como não sou pessoa para perturbar com quem me cruzo, e porque não vejo vontade do outro caminhante, é mais um, ou uma, a esvair-se na espuma do tempo.

No meio deste isolacionismo doentio, salve-se a Igreja de Monte Formoso e os centros de apoio que à sua volta gravitam, pelo mérito socializador desencadeado que se reproduz pela comunidade. E digo isto, sem sectarismo, já que não sou crente.

Estamos falando de pessoas e de instituições.

Há uma delas, com quem me cruzo todos os dias, a quem me habituei a «dar a salvação», diga-se, sempre correspondido. Pergunto para os meus botões: “Mas que nome terá ela? Porque ainda não perguntei e ela a mim?”. A resposta é só uma: a sociedade – de socialização individualista, egoísta – transformou-nos em números, pessoas sem nome e rosto, para os pares sociais que ao nosso lado vivem e caminham. A socialização do local acabou. Viva a globalizada (?…), a das redes sociais. Aí estão os amigos, os amigos com semblante virtual com quem se fala e troca intimidades!

Retomemos a mulher em apreço, que me levou a filosofar um pouco. Essa pessoa sem nome, quase todas as manhãs passa por mim, a caminho dos seus afazeres, chova ou faça sol. Fica-se pelo bairro ou segue a caminho da Baixa no autocarro ou a pé.

Começo a observá-la, com melhor atento, e enxergo-a, todos os dias, a passear com imensa ternura o seu cão. Outras vezes, com comida e água segue a tratar dos gatos que por ali abundam. Conhece-os quase todos. Já reparei que visita alguns cães que estão nos quintais, para saber como estão e como vivem! Nada lhe escapa sobre os animais da zona.

Noutro dia, dia de muito calor, senti-a preocupada com a necessidade de água para esses animais: Trazia um copo desse precioso líquido para dar a um gato que lhe pareceu muito desidratado. Eu estava por ali perto e perguntou-me se, por acaso, não o tinha visto. Caracterizou-me o animal e eu disse-lhe que iria estar atento. Esta foi a conversa mais longa que tive com essa Senhora. Estive para lhe perguntar o nome, mas não tive coragem.

Esta mulher é uma verdadeira amiga dos animais. Trata-os, não os abandona. Será, porventura, a melhor dona de todas as que conheço.

Hoje em bairros como este, já muito descaracterizados, vive-se com as figuras que emergem, por este ou por aquele motivo. Estas são o resto do meu bairro antigo. Para mim, esta Senhora, continua a ser conhecida como era, com toda a deferência e muita afeição. A Senhora dos gatos. Obrigada Senhora, sem nome mas com alma.


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