A 16 de fevereiro, António Costa escreveu um, artigo no “Público” onde explicou que anda a pensar nas políticas de habitação desde 2014. Trabalhando há nove anos no assunto, alega que não está a começar pelo telhado. Bom, as telhas seriam alguma coisa. Já o documento disponibilizado em consulta pública esta semana é o mesmo que nada, e mostra que nem o terreno onde vão implantar o edifício estudaram.
A minha primeira reação ao pacote de medidas foi de indignação: como era possível propor arrendamentos compulsivos, sem fundamentar a necessidade de uma medida tão drástica? Cometi o erro (um pouco tonto, reconheço) de levar os anúncios do Governo a sério. Lendo o que está em consulta pública, percebe-se que essa é, na verdade, uma não-medida; tem tantas exceções e etapas que nunca será aplicada, tal como não foi aplicado o arrendamento coercivo de propriedades florestais (que tem legislação similar). Não discutirei o que não passará do papel.
Em diversas entrevistas, Helena Roseta tem-se queixado de não haver projetos de diplomas legais para discutir. Tem razão, mas a verdade é pior: não há dados. Andam há quase 10 anos a estudar o assunto e não há dados. Assim, só por um mero acaso se acerta no diagnóstico e se desenha a política correta. Bem sei que muitos suspiram de desespero quando alguém se queixa de falta de dados, querem ação. Podia recorrer à analogia do médico que tem de tratar sem meios de diagnóstico, mas deixem-me tentar explicar como é que se pode gastar dinheiro de forma absolutamente inútil apenas porque não se fez o levantamento do terreno.
Vera Gouveia Barros economista que tem investigado o mercado da habitação, já várias vezes levantou a hipótese de as rendas seguirem uma distribuição bimodal, o que tornaria grande parte do dinheiro gasto no Programa de Apoio ao Arrendamento um desperdício. Imaginem que o mercado de arrendamento numa dada cidade tem essencialmente dois segmentos, um bastante caro, de rendas em torno dos 1500€, e outro mais acessível, com rendas médias de 500€. Neste mercado, a mediana andará entre m e outro valor, suponha que é de 1000€.
O Programa de Apoio ao Arrendamento dá uma isenção fiscal aos senhorios. Uma condição necessária é que a renda não exceda 80% de um valor de referência calculado em base na mediana. No exemplo referido, deverá ser inferior a 800€ – estou a simplificar porque há outros fatores, mas serve para se perceber o problema. Nenhum senhorio do segmento mais alto vai deixar de arrendar a sua propriedade por 1500€ só para não pagar IRS/IRC. Por outro lado, quem opera no segmento mais barato vai querer usufruir dessa isenção, mas a verdade é que já oferecia as casas as casas a rendas acessíveis. Temos assim, um programa desenhado para dar prejuízo (as borlas fiscais atribuídas) e com um impacto quase nulo no mercado de arrendamento.
O que descrevi nos parágrafos anteriores tem adesão à realidade? Não sei, não há dados. Nem sequer a porcaria de um gráfico (ou uma tabela) com a distribuição das rendas, a ver se tem duas bossas, como um camelo, indiciando um mercado bimodal.
Note-se que peguei no exemplo de uma medida simples e óbvia – dar uma borla fiscal a quem pratica rendas acessíveis -, mas que basta estar mal calibrada por ausência de dados para não ser mais do que despesa inútil. Muitas das outras medidas propostas exigiriam mais dados para serem avaliadas. Mas nada nos é apresentado.
Como é e alguém de boa-fé pode opinar sobre o melhor incentivo a que casas vazias entrem no mercado se não fazemos ideia nem de quantas casas estamos a falar nem dos motivos para os seus donos não as porem no mercado? As casas podem estar desocupadas por causa de péssimas experiências anteriores com despejos, porque os proprietários estão envolvidos em problemas intrincados de partilhas, porque há fundos com poder de mercado que não as põem no mercado para pressionar os preços. E, com certeza, haverá mais motivos. Alguém que esteja bom da cabeça vai acha que a solução para um destes diferentes casos é a mesma? Como é sequer possível dar uma opinião sem haver um estudo de mercado ou números que nos digam qual a principal razão para termos tantas casas desabitadas? Pôr em consulta pública um documento sem esta informação e que mais parece uma apresentação fraca de Power Point é pedir ao público que dê bitaites sobre a política de habitação.
Num debate em que participou Leonor Caldeira – a advogada que conseguiu que um tribunal condenasse André Ventura pelos insultos à família Coxi e que agora representa os ativistas anti-Putin que estão a processar a Câmara de Lisboa por ter partilhado os seus dados com a embaixada russa – queixou-se de que durante anos ninguém chamou o Governo à pedra por nada fazer em matéria de habitação.