Tenho grande predilecção por acontecimentos históricos, lendas e mitos, muitas vezes, a eles associados. Por esse facto, não perco nenhum dos programas de Paula Moura Ferreira (Visita Guiada, na RTP1) e os de Joel Cleto (Caminhos da História, no Porto Canal).
Hoje falaremos de Santa Liberata, tema tratado por Joel Cleto no seu último programa.
Conta a lenda que esta Santa é uma espécie de padroeira, não oficial, das mulheres maltratadas pelos maridos – seria, sem qualquer dúvida, uma figura muito útil para a violência doméstica dos nossos dias, mas toda a ideia parece vir, em exclusivo, do seu nome de Liberata (que significa “libertada” em latim), sugerindo que tal como esta jovem foi salva de um mau casamento, também quem a venere será protegida ou libertada no seu
Reza ainda a lenda que nasceu na Lusitânia, em terras de Portugal, por volta do ano 119, e que, antes de ser Santa, se chamava Vilgeforte. Seu pai, um rei malicioso, teimava casá-la com um pagão, por sinal um jovem esbelto, contra a sua vontade, que era mui casta e devota.
Estas linhas, como já disse, foram o mote do último programa televisivo de Joel Cleto no Porto Canal.
Santa Liberata é apresentada com barba e prestes a morrer crucificada. É essa barba o seu elemento mais famoso, a forma mais fácil de a identificar. Com o passar dos séculos foram-lhe também associados dois outros, nomeadamente sapatos preciosos (um dos quais a cair ao chão), e um violinista. Mas de onde vêm todos estes estranhos elementos? E de toda essa esquiva história de que aqui falamos hoje!
Dizem que era, originalmente, uma mulher muito atraente que dedicou a sua virgindade a Deus. Depois, e como é habitual nestes casos, a sua beleza atraiu o filho de um nobre, que por ela nutria um grande amor, naturalmente não correspondido. Mas, como os tempos eram outros, ela ia ser forçada a casar com esse homem, até que pediu a Deus que a salvasse, que lhe retirasse a beleza que tantos problemas lhe estava a causar. E assim foi feito, – nasceu uma (supostamente horrenda) barba na cara desta jovem, o que muito irritou o seu apaixonado, levando ao cancelamento do casamento e, mais ainda, à sua crucificação.
Os mais atentos poderão notar que este cerne da lenda da Santa não explica nem o sapato de ouro, nem o violinista. Sobre esses elementos, a história foi sofrendo bastantes alterações ao longo dos séculos, mas numa das versões mais populares diz-se que com o passar do tempo foram feitas imagens desta santa, então já há muito falecida, e que um dado dia um crente – que era violinista – se aproximou dela e lhe pediu ajuda. A imagem da Santa, sofrida, atirou-lhe um dos seus preciosos sapatos, como pode ser constatado na imagem abaixo representada, provavelmente para que este o pudesse vender e comprar algo para comer.
Toda esta lenda poderia ficar por aqui, mas a estranheza da sua conjugação de elementos – uma mulher crucificada e com barba; os sapatos de ouro; o violinista; etc. – tem obrigatoriamente de nos levar a uma outra história medieval.
Há muito que se diz que esta Santa nasceu não de uma mulher real, mas de uma representação de Jesus Cristo na cidade italiana da Lucca, que é hoje conhecida como a “Santa Face de Lucca”. Como é fácil constatar esta imagem que acima representamos, o Cristo está completamente vestido (para os menos atentos, na igreja católica ele tende a ser representado quase nu), tem barba, e na gravura até pode ser visto acompanhado por um violinista e um sapato (presume-se que seja o precioso).
Muito mais podia ser dito sobre essa representação – por exemplo, como a tradição diz que ela foi feita por Nicodemos, tal como o venerado Bom Jesus de Matosinhos.
Vá-se lá acreditar neste mito!… [com a devida vénia a Joel Cleto e a dois sites do Google].