13 de Dezembro de 2024 | Coimbra
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VASCO FRANCISCO

Pormenores de São Martinho

23 de Novembro 2018

A instabilidade de um clima tipicamente outonal não deixa que ninguém passe despercebido às várias facetas deste equinócio. Cada dia é uma nova data, cada vez mais próxima de fechar mais um calendário. O frio veio para ficar, invadindo as serras e os vales como se os quisesse conservar na sua frescura para sempre. O vento parece que tem vindo a ter mais piedade de nós nos últimos dias, não apagando da memória o fenómeno vivido. O céu, ora se forra de cinzento, ora nos brinda com o seu azul mais puro. Face aos modos desta estação, aos poucos vai-se apresentando a senescência de uma paisagem que se vai despindo gradualmente de uma folhagem que vai forrando os solos. As cores do outono, são talvez as tonalidades mais “clássicas” de todas as estações, numa constante transformação de tons que é observável até à nudez completa e à entrega ao repouso. O enfraquecimento da luz leva ao entristecimento dos corpos que vão procurando o aconchego das suas casas onde as lareiras se vão acendendo.

Descendo da serra até à cidade, os soutos distraem o olhar de quem neles repara. Os ouriços vão-se abrindo, cuspindo as suas filhas que até então protegeram em seu regaço espinhoso. Os castanheiros são das espécies que melhor sabem dar o exemplo de uma velhice produtiva, são uma prova análoga entre o homem, que mesmo cansado do seu caminho nunca deve desistir dos seus objetivos.

Chegando à cidade, é impossível disfarçar aquele cheiro que invade as artérias da urbe. Na ligeira neblina matinal confunde-se aquele fumo aromático dos assadores, onde aquelas mesmas castanhas que há pouco via debaixo dos castanheiros, se assam como de um ritual obrigatório se tratasse. Bem perto daquele vendedor assíduo da praça mais cobiçada de Coimbra, deparo-me frequentemente com um “mendigo”, que ali debruçado no chão pede esmola de braço estendido.

Aquele quadro vivo, desenhado em pleno século XXI faz-me refletir no papel de São Martinho há séculos atrás, aquele mesmo que rasgou um pouco da sua capa para abrigar um pobre nu em dia de tempestade. Desde cedo que nos embalamos com histórias e lendas, que geracionalmente nos chegam e nos honramos em passar. Histórias que nos transmitem certos valores, que ao longo da vida vamos assimilando. O exemplo de São Martinho, seja lenda ou realidade, jamais poderá ser esquecido nos tempos atuais. A verdade é que na Era do soldado romano a pobreza apresentava-se mais nítida, quero eu dizer, sem tantas dúvidas perante quem realmente necessita. A pobreza e a exclusão social, são hoje temáticas assíduas, representando um dos grandes problemas da sociedade. No entanto há cada vez mais dúvidas, a quem realmente ajudar? Num mundo cada vez mais falso, interesseiro e oportuno.

Temos que ajudar sim! cabe a todos na medida das suas possibilidades, seja em termos de alimentação, alojamento, saúde ou educação. No entanto, ajudar quem? Há bem pouco tempo dava uma moeda a um “pobre” que dizia não poder andar. Aquele individuo parecia-me mesmo doente, com as pernas meio raquíticas, amparado a um par de muletas. O que me fustigou, foi voltar as costas a uns bons metros a frente e ver aquela mesma figura a andar perfeitamente com as muletas às costas!

Existem muitos “pobres” no sentido mais fiel e significativo da palavra, esses que por vezes nem mendigam nem pedem, acabando por ser ultrapassados por aqueles que traduzem uma pobreza disfarçada, esses que são pobres é de educação e de vontade de trabalhar. Os serviços sociais e solidários estão por vezes mal erradicados e monitorizados, seguindo os exemplos de trabalho da justiça portuguesa, que cada vez mais defende a “injustiça”.

No quotidiano da vida, queixamo-nos frequentemente de tudo, sabendo mesmo que há pessoas no país e no mundo a passar bem pior que nós. É perante essas pessoas, que sofrem da guerra, das doenças cada vez mais rubras, das catástrofes que lhes destroem as casas, toda uma pobreza que devemos encarar com o exemplo de São Martinho. A maior parte da sociedade defenderá esta ideia, mas e os governantes? as próprias ordens eclesiásticas? Porque razão haverá tantas pessoas que poderiam trabalhar e estão em boas casas, sem que nada lhes falte, e outras que mal se mexem e não têm quem as ajude e continuam sem nada?

Façamos o bem a quem o merece e o necessita. Não esperem milagres, a não ser um simples dia de verão, o verão de São Martinho.


  • Diretora: Lina Maria Vinhal

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