Por mais pobre que fosse uma casa aqui na Gândara, o forno tornava-se num bem essencial já que a partir dele se matava a fome. Tal não significava no entanto que sempre houvesse farinha ou lenha para cozer a broa uma vez por semana, pois nem todos eram lavradores! E quantas vezes ela não acabava em algumas casas antes da fornada seguinte e a questão remediava-se pedindo uma emprestada à vizinha.
A construção dos fornos era feita com cacos e barro amassado, pois à época não havia o tijolo burro que posteriormente passou a ser utilizado em substituição daqueles materiais, ficando a boca virada para o borralho e a abóbada para o quintal, protegida por um pequeno telheiro por mor do mau tempo. Para que a abóbada ao ser fechada não ruísse, era metido um cesto de verga de fundo ao ar como suporte dos cacos e, no dia seguinte, punha-se-lhe o fogo. A partir daí, já a broa podia ser cozida com todas as rezas e rituais, a par dos folares pela Páscoa e das caçoilas de lampantana pelas festas – mimos só para alguns, já que os restantes comiam broa com conduto de broa, se a apanhassem! Era broa com dentes, assim se falava!
– E é havê-la, dizia a Ermelinda Sanga, enquanto colocava no bolso do esfarrapado avental os bocaditos que por esmola ali lhe caíam, mesmo com um pouco de bolor, a que por vezes se juntavam uns pedaços de coiratos rançosos que ela trilhava na aba do ensebado chapéu. Por aqui, aguardava-se pelo tempo dos figos como o diabo pelas almas, pois eram eles que quase sempre acompanhavam a côdea quando se ia para cima da figueira quebrar o jejum. E de tal modo era grande o desejo por eles, que nem tempo tinham para amadurecer. Bastava que estivessem inchados pois os dentes faziam o resto! E conta-se, a este propósito, a estória do Xico Maria, que todas as manhãs se deparava com o genro de há poucas semanas, por alcunha o Caçarrabo, em cima da figueira lá no quintal, sem que ele, apesar de dono e com a mesma fome, conseguisse provar um que fosse. E certo dia, não se contendo com tal descortesia, olhou-o lá bem na caruta e disse: Muita era a fome que trouxeste, Caçarrabo Maldito, nem as folhas escapam! E a referência cá ficou de reserva para outras tiradas, pois Caçarrabos não faltam por aí! Tão breve alusão explica por si só como, por estas terras, eram vistas e interpretadas tais árvores ao serem reconhecidas como meio sustento das famílias carentes. E tão importante era o seu papel que não havia uma só casa onde não existisse uma figueira, logo à saída da porta de cozinha, de preferência uma daquelas que davam várias camadas ao longo do ano. E dizia-se mais, dizia-se com convicção que havendo numa casa um forno e uma (s) figueira (s) lá no aido, já ninguém morria de fome! Foi por isso que me tocou tanto a imagem que aqui deixo e que, num fim de uma recente tarde colhi à saída do S. Caetano, para quem vai virado à Lagoa Negra. Nela se vê a abóbada de um forno, que atravessou a parede da fachada de uma casa entretanto recuperada, tendo por cima o pequeno telheiro de abrigo e ao lado uma figueira, tudo virado para a estrada, juntinho à valeta da rua. Neste “postal” há uma Gândara material e há muito uma Gândara espiritual deixada por uma mulher aos 87anos, que ali cozeu a broa e rezou as palavras, que ali comeu os figos por conduto, que ali lembrou, por certo sem acreditar, que foi numa figueira que judas se enforcou. E digo sem acreditar, porque ela bem sabia o que representava para nós o meio sustento desta árvore.
Ainda hoje continuamos a encontrar figueiras em quase todos os espaços onde existem ou outrora existiram casas gandaresas, a que se lhes juntam, por vezes, fornos sobrevivos. Memórias…