Portugal, como Estado parte da Convenção da ONU contra a Corrupção, está obrigado a adotar medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem, ou tenham participado na prática de uma infração desse tipo a fornecerem informações úteis às autoridades competentes para a investigação e a produção de provas.
Essas medidas poderão ser a atenuação da pena ou até a sua dispensa (o processo é arquivado ou o agente é condenado, mas não em pena). Evidentemente, para o agente esta é melhor do que aquela.
O que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC) revela é que a intenção do Governo é precisamente a oposta: desincentivar tal colaboração. Se o que propõe vier a ser lei, os poucos incentivos hoje existentes serão ainda mais reduzidos.
Na verdade, a ENCC pretende restringir a possibilidade de dispensa de pena: (1) limitando-a aos casos em que o agente denuncia o crime antes de instaurado o procedimento criminal, impedindo essa aplicação nos casos em que o agente, embora não tenha feito essa denúncia, venha a colaborar efetiva e concretamente com as autoridades na recolha de provas do crime; (2) na corrupção para ato ou omissão “ilícitos”, acrescendo a exigência de que o ato não tenha sido praticado (a denúncia posterior, mesmo que antes do início do processo, será irrelevante); (3) afastando a possibilidade de arquivamento do processo por acordo entre Ministério Público e juiz de instrução, devendo o arguido denunciante ser sempre julgado.
A mera denúncia (que é de limitado interesse, pois mais cedo ou mais tarde sempre haveria notícia do crime, por um lado, e a elevada dificuldade probatória permanecerá exatamente a mesma, por outro) permitirá a dispensa de pena, mas a colaboração ativa (que normalmente será muito mais relevante) já não.
Quem denunciar, mesmo que em nada contribua para a prova terá esse benefício; quem não for o primeiro a denunciar, mesmo que contribua decisivamente para a prova, já não poderá beneficiar.
Não obstante, incompreensivelmente o que a ENCC valoriza é a denúncia, não a colaboração ativa. Afinal, o Governo está confortável com a delação premiada; o que o incomoda é premiar a colaboração.
Só, porém, no âmbito da corrupção. Não esqueçamos que em crimes de não menor gravidade – como os de terrorismo, associação criminosa, tráfico de drogas ou branqueamento – a lei continuará a permitir a condenação com dispensa de pena (em julgamento ou até o arquivamento do processo, havendo acordo entre Ministério Público e juiz de instrução), para aqueles que, ainda que não tenham denunciado o crime antes do início do processo, e sem qualquer limitação temporal em relação ao crime que cometeram, auxiliem concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.
Qual o fundamento para essa diferença de regimes? Por que razão deve os agentes dos crimes de corrupção ter um regime “mais simpático” contra a colaboração dos coenvolvidos? Os que compram e vendem os poderes públicos deverão ter mais proteção do que os que o fazem sobre drogas?
Muitas vezes muda-se a lei para que tudo fique na mesma. Não será o caso: mudar-se-á para que fique pior.