5 de Novembro de 2024 | Coimbra
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ANTÓNIO CASTELO BRANCO

Pelo tempo da azeitona

17 de Janeiro 2020

Podemos dizer que a tia Emília, que hoje faz parte das memórias da minha terra, esperou pela morte à porta de casa. Devota da Igreja, ela sabia dos santinhos de cada dia e daí começar a orar mal as Trindades da manhã se faziam ouvir. Toda a vida enfeitou o altar da Senhora das Dores, com as flores que plantava e cuidava em canteiros e vasos improvisados no seu quintal. A idade entretanto interpôs-se, evitando que pudesse continuar a fazê-lo, pois era necessário subir cadeiras e escadotes para chegar às jarras e solitários e acender as velas das promessas aos pés da santinha.

Assim, a sua vida mudou e era agora, sentada na soleira da porta que os dias se desenrolavam. Falava com quem passava, queria saber as novidades e sempre rezava o responso ao Santo António a quem lho pedisse, para que fosse recuperado o perdido. Quando íamos ou vínhamos da escola punha-nos as mais variadas questões, cujas respostas ela sabia, porque também lhas haviam ensinado: quem foi o primeiro rei de Portugal? com quem foi casada a Rainha Santa e como se deu milagre das rosas? qual era o nome de Santo António e a que Mosteiro pertenceu? quantos são os mandamentos da Lei de Deus?…

Depois, ela sabia estórias e lengalengas e punha adivinhas e sabia as rezas todas que eram necessárias para cada momento de aflição. Quando nos via de funga ao pescoço, clamava para não matarmos as andorinhas porque eram as galinhas do céu. E quando olhava para as nossas calças com fundilhos e joelheiras, lembrava-nos sempre dos cuidados a ter para não dar trabalho às nossas mães! Pelo tempo em que estamos, fazia-se a apanha da azeitona. A produção era fraca, e quantas vezes, só de três em três anos ou mais, é que se conseguia fazer um moinho de azeite. Nos anos em que eram poucas apanhavam-se para curtir, e vezes sem conta, nas casas pobres, elas respondiam pelo conduto, acompanhadas de um bocado de broa. Ao invés da apanha por varejamento que acontecia quando era para azeite, estas outras eram ripadas à mão para evitar que ficassem pisadas. E um dia a tia Emília contou-nos como se “adoçavam”: – Faz-se uma escolha onde as bichosas ou as mais pisadas se retiram, lavando-as em seguida. Num pote, vão-se colocando em camadas, adiciona-se-lhes sal, alho esmagado, orégãos, rodelas ou folhas de limão, carqueja, murta do monte e alecrim. Ao terceiro dia cobrem-se de água, corrigindo-se o sal. De três em três dias e ao longo de quatro semanas aquela é mudada, tendo o cuidado de não vazar nem a borra nem a flor que entretanto começa a aparecer ao cimo. Ao fim de três meses estão boas para comer. Neste desenrolar de recordações, permanece em mim a lembrança daquela tarde em que a nossa professora nos levou junto desta mulher, para que a ouvíssemos, tendo-nos ela posto esta adivinha: “ verde foi meu nascimento,/ e de luto me vesti,/ para dar a luz ao Mundo,/ mil tormentos padeci”. Um sussurro vindo de fora deu-nos a resposta e nós, batendo as palmas de contentes, respondemos em uníssono: É a azeitona!


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