Quando somos crianças sonhamos ser como os grandes. Eu não fugi à regra e, um dia, algures na adolescência, quis ser futebolista, à imagem e semelhança do Gomes, o bibota de ouro, que esta semana nos deixou. Cedo me deixei impressionar com o instinto de goleador, felino e letal, que em frente à baliza, raramente, falhava, não obstante, ser de estatura média. Às vezes a bola parecia que ia ter com ele, como se tivesse um íman nos pés ou na cabeça, noutras adivinhava onde ela iria cair, ficando como que perdida, mas à sua mercê. Era, na verdade, um predestinado, que um dia saiu da sua zona de conforto para fazer testes de captação no seu clube de coração, a quem não escaparam as capacidades inatas que transportava, e que muito cedo o catapultaram para os holofotes da fama.
O Gomes marcou centenas de golos, representou a seleção das quinas, e arrebatou um número impressionante de troféus ao serviço do FC Porto. Porém, o que nele se destacava e fica para a posteridade prendia-se com uma particularidade da sua personalidade: a alegria com que marcava cada golo, de rasgo sorriso e mão no ar com dedo apontado na direção do céu, correndo desenfreado para a massa associativa, como se fosse um dos seus, agradecendo-lhes por ser aquilo que era – um ídolo das massas, do povo, do Porto!
Não consta que fosse provocador, foi humilde e fiel às suas origens, um líder dentro e fora de campo a quem a braçadeira de capitão assentava que nem uma luva. Discreto, sabia-se há muito que estava doente e que a doença terrível que transportava, mais dia menos dia, poderia determinar o seu fim.
É quase sempre quando partimos, infelizmente, que nos dão o nosso real valor, pelo que em nada estranho as imensas manifestações de carinho pela sua pessoa, que conseguiram a proeza, raríssima, de serem transversais aos três principais emblemas nacionais. E isso diz quase tudo sobre aquilo que Gomes foi, um Senhor do futebol, uma lenda, um ícone não só do FCP, mas sobretudo do futebol nacional.
Tenho do Gomes um episódio muito particular para contar. Um dia, ainda menino, fui ver um jogo do Porto ao Estádio Municipal, já não sei se contra a Académica ou outro emblema. Acompanhava-me aquele que um dia veio a ser presidente da Casa do Benfica, o saudoso João Santos, que apesar do seu benfiquismo nutria pelo Gomes uma admiração especial, devido a um episódio tão belo quanto inédito:
Quando naquele jogo e a dada altura o Gomes mostra a sua veia goleadora, o João Santos, que já simpatizava com ele sem saber muito bem porquê, ilude a vigilância, salta para dentro do campo, para comemorar também, conseguindo correr a seu lado durante alguns segundos, até ser afastado pela segurança, ficando a partir daí em transe e gritando continuadamente “Porto, Porto, Gomes, Gomes”. Incrédulo, perguntei-lhe:
– Mas tu és do Porto?
– Não pá, sou do Gomes! Viva o Gomes, viva o Porto, respondeu-me o João com as mãos no ar, associando-se aos cânticos que então entoavam da bancada – para minha completa estupefação.
Quando o jogo terminou e a festa invadiu o relvado, lá conseguimos furar a muralha policial, e abeirámo-nos do nosso ídolo, que sempre sorridente nos levou pela mão relvado fora, tranquilamente, pegando no João Santos e colocando-o às cavalitas (imagem forte que correu, então, nalguns jornais), sempre a gritar “Gomes, és o maior, viva o Porto”!!! – ele que era um benfiquista dos sete costados…
São momentos, como estes, que não mais se esquecem, e que evidenciam a dimensão da grandeza e do legado de um Senhor do Futebol. Obrigado, Gomes, foi um privilégio ter-te visto jogar e marcar como só tu sabias…