23 de Abril de 2025 | Coimbra
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VASCO FRANCISCO

O Velho Amigo

23 de Dezembro 2021

Acendiam-se já os candeeiros de rua quando entrei naquela modesta loja onde as relíquias de um passado lhe enriquecem todo o espaço, numa conjugação perfeita entre o popular e o clássico, onde tudo tem valor, nem que seja pela lembrança de algumas utilidades que fazem recordar a antiga casa dos avós, as heranças de família, a história da confeção artesanal ou da industrialização. Daqueles lugares onde o cheiro a recuperador por vezes incensa o momento, onde os quadros e esculturas, sagradas ou mesmo tentadoras nos parecem lançar olhares. Entre móveis e vitrines onde as faianças parecem galgar os vidros com tanta cor, ou mesmo a beleza tosca e tão nossa de alguma cerâmica popular.

Ouço alguém a folhear papel, logo me atraem os livros e as páginas dos velhos jornais. Num corrupio de olhos percorro as pilhas e as estantes vendo se surge algo de meu interesse. Pego num desses clássicos ao acaso, desfolhando-o de cócoras numa dessas prateleiras do fundo. Sinto-me observado por instantes, vendo a meus pés dois sapatos escuros e as bainhas de um casaco comprido. Deparo-me com um Senhor dos seus oitenta – “Boa tarde. Desculpe. Pode ver à vontade…” – pensando que estava ali a servir de estorvo. “Não rapaz deixe-se estar, assim vai vendo os livros e eu escuso de estar a mexer neles todos, vejo também. Esse que tem na mão foi o primeiro romance que li.” Logo me levantei, não conseguindo conter a conversa com tal pessoa que se desfilou em interessantes frases de vida e de literatura. Tinha eu nas mãos o romance “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco. “Li Camilo de trás para a frente num desses exílios a que a vida me obrigou, fui com Eça pela cidade e pelas serras, com Herculano não gostei muito de ir à boleia, com Torga percorri Portugal e tantas letras mais.” Sentia-me ali na companhia de um apaixonado por grandes autores da nossa literatura. Os livros escutavam-nos, uns novos, outros velhos, algumas raridades, outros augados de leitores. “Sabe amigo, já tive fome de livros, ainda tenho, mas queria que o os portugueses na sua maioria tivessem essa fome das letras, essa sede de conhecer, aprender e viajar com um livro na mão.”

Afirmei com a cabeça achando compreender a sua vontade, mas nem tinha coragem de o interromper. “Hoje só vejo o mundo colado aos ecrãs… Todos os anos dou alguns livros aos meus netos, talvez dos poucos que eles leem a cada 12 meses.”

Aos poucos se despedia, só sei que não queria que o homem se fosse embora. “Sabe, hoje os livros são parentes pobres… e escrevê-los, já sou velho para isso…”, – “Não é nada, só pela conversa já ganhou um leitor.” – Logo o tentei encorajar, “Sabe, mas se o fizesse, escreveria algo suave, algo leve, simples e que toque, pois, o mundo está deprimido! Precisa que o animem e confortem, enquanto outros necessitam de saber o que é essa leveza, essa suavidade entre as pessoas que tanta falta faz. Gosto em vê-lo, até uma próxima!”. E num instante me escapou o senhor de boina de lã sobre a cabeça.

Calcorreando as ruas da cidade, senti que via as luzes e o brilho do Natal com mais intensidade. Os presépios das montras pareciam-me fazer ainda mais sentido, as ruas cheias de gente, entendia-o como algo necessário. Será uma mensagem de Bom Natal, as palavras deste novo “velho amigo”, tal e qual, verdadeiras como leu.

A todos os leitores, amigos e colaboradores destas páginas umas Boas Festas e que 2022 Desperte com a alegria de novos dias.


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