20 de Março de 2025 | Coimbra
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VASCO FRANCISCO

“O Senhor dá licença?”

22 de Novembro 2019

Parece que nos últimos dias, São Martinho terá tido alguma dificuldade em convencer São Pedro a declarar umas semanas do seu afamado verão. Há castanhas, jeropiga, os magustos continuam no seu formato outonal. Haja fagulho para assar o fruto dos soutos, reunindo-se as comunidades num convívio onde se enchem as mãos de cinza e a barriga de “madeira”. Há castanhas para todos, já não se abafam com as folhas de couve como costume de antanho, mas comem-se com a mesma regalia. O povo de tudo faz uma festa, se ainda há romarias pelos Santos, estas estendem-se até ao São Martinho e mais quantos santos e feiras houver. Começa a ser desajustada temporalmente a expressão que dita “não há festa sem foguetes, sem gaiteiro e sem pancadaria”, enquanto começa a ser moda referir que “não há festa sem licenças”.

O povo português sempre manifestou a sua alegria através dos atos mais populares, numa panóplia de costumes que se apresentam dos pés à cabeceira deste país, dos Reis ao Natal. É pelos festejos anuais, predominantemente de origem sagrada, que as aldeias e vilas se revestem de vida e de cor para festejar tradições seculares que outrora se viviam, numa espontaneidade hoje rara de se assistir.

A presença do grupo do gaiteiro é sinónimo de arruadas, bailes e peditórios e com sorte toca à missa; Se este não acompanhava a procissão em honra do santo padroeiro era a filarmónica que percorria a aldeia prosseguindo os andores naquele compasso de fé; As fogaças se as havia eram leiloadas num leilão renhido e desafiante; O terreiro era o palco das danças e cantigas que faziam mexer pés ligeiros e pesados, cantando e dançando pela noite dentro, à conquista de namoros e advertimento. Jamais queriam deixar de dançar “o resineiro”, “o marinheiro”, “a farrapeira” ou “o vira” (Beira Litoral). Se se juntava uma guitarra ou uma viola, uma rabeca, um acordeão ou uma concertina, um clarinete ou uma harmónica logo estava o baile montado, servindo-lhe o chão de tabuado ou alguma carroça ali perto. Logo apareciam cantadores, cantassem eles bem ou mal, as vozes do povo não se mediam, cantavam os roucos e os guinchados, as desdentadas e as rasas e tudo ali ganhava nome de cantadeira ou cantador afamado/a. A noite já ia longa, alguém roubava o tocador de guitarra e ali debaixo de alguma janela se cumpria uma serenata desejada.

O que foi não volta mais. Se os “antigos cá viessem” teriam de pedir permissão para tudo à comarca ou ao regedor? Eles que pelos campos respeitavam tanto o canto como o diálogo, dançavam e cantavam nas eiras, sabendo medir o respeito e as épocas (quaresma/doença/luto) numa comunidade.

Atualmente a animação das romarias e festivais passa em parte pela presença dos grupos de gaiteiros, de folclore entre outros agrupamentos representativos da cultura popular. Juntam-se aos eventos artistas e bandas, que enchem os recintos que em certas aldeias se vêm cada vez mais despovoados de forasteiros.

É inexplicável como é possível as mordomias organizadoras de tais festejos terem de pedir certas licenças para qualquer evento que se refletem em custos. Junta-se a problemática de terem de pagar “direitos de autor”, inexplicável é quando esta cota se aplica a grupos que apenas interpretam letras e melodias de origem popular, que ao longo de gerações se foram transmitindo oralmente, refletindo-se num grande legado que chegou aos nossos dias como preciosidades dos cancioneiros locais e da sabedoria regional de um povo. Certas permissões não fazem qualquer sentido, sendo um exagero escusado e destruidor destas manifestações identitárias. À exceção de algumas autarquias este problema repete-se pelas várias regiões. Entendem-se as burocracias e exigências para o lançamento de fogo, espetáculos pirotécnicos, direitos autorais de bandas e artistas musicais etc, mas não se explicam certas medidas aplicáveis à origem popular. É incompreensível certas leis nacionais, o modo como são aplicadas, a quem se aplicam e como se compreendem.

Como se hão de manter vivos certos costumes e tradições, num século em que para tudo temos de pagar e rogar “O Senhor dá Licença?”


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