Na Praia da Tocha vive um homem nascido na Caniceira que desde menino aprendeu a conviver com o mar, onde já na altura havia as mesmas tempestades, as mesmas marés, os mesmos ventos, as mesmas turbulências, a mesma força indomável que dias depois sempre acaba por se transformar em acalmia e bonança, a partir daquele sol que se espelha nas águas e se reflecte nas quentes e soalheiras dunas brancas. Mas o Manuel conviveu igualmente com as noites, quando dormiu nos palheiros então dispersados pelo areal fora, onde o cheiro da maresia e do estormo se misturavam! E era através das frestas e com o céu estrelado que ele via lá longe as luzes dos barcos no horizonte; ao invés, se a noite fosse de nevoeiro, nem a lua cheia enxergava! Hoje, com oitenta anos, os seus dias são de grande contemplação quando, logo pela manhã, procura o paredão onde se senta a ver as traineiras regressarem da pesca viradas à Figueira.
Depois, é o passeio pela beira-mar sem mais ninguém, onde já nada se encontra como antigamente, quando as pessoas iam à catraia. Segundo nos confidenciou, as grandes saudades que guarda daquele recanto à sua frente remontam ao tempo em que aqui participou na pesca enquanto rapoleiro, designação dada a quantos ajudavam a colocar e tirar as redes do mar ou posteriormente colaboravam na escolha do peixe, no estender das artes para enxugarem, ou no aparelhar da embarcação. E tudo isto conta-nos, por um quinhão de peixe, uma teca como era conhecido, dada a quem participasse na faina. Dos 21 aos 25 anos Manuel Maricato esteve na tropa, tendo depois concorrido à Guarda Fiscal onde fez carreira até se reformar.
Durante esse tempo viveu praticamente na região de Lisboa estando agora fixado na Praia da Tocha, onde se encontra desde há quatro anos por razões familiares. A memória privilegiada do nosso interlocutor e a sua história de vida levam-nos a registar os mais marcantes episódios e momentos que aqui aconteceram e contribuíram para o surgimento da Praia que agora temos. Por isso, quando o ouvimos evocar as primitivas companhas de pesca desta beira-mar, com barcos que chegavam a ter quatro remos e levavam quarenta homens, barcos esses encomendados nos anos quarenta por Maia Rico a Manuel Jorge Maricato e ao filho Jacírio, construtores das Berlengas; quando ele nos referencia, no largo da actual vila, o local em que as madeiras eram serradas e postas a secar antes de serem obradas; quando nos fala do trajecto e das inúmeras juntas de bois que depois os puxavam pelas areias adiante até ao mar, tal como fotografias da época retractam; quando nos conta terem existido aqui bois a puxarem as redes e não só pessoas como viria a suceder mais tarde; quando nos diz dos naufrágios que enlutaram estas terras e recorda o toque do búzio que chamava aqueles que andavam a semear a floresta a troco da teca -, quando ele explana tudo isto, está a falar da arte xávega e que bom seria ouvi-lo e questioná-lo no Centro de Interpretação que para esse efeito aqui foi criado! Uma ideia que me ocorreu a partir do momento em que Manuel Maricato partilhou comigo o seu saber.