I
Tenho grande atração pelos jornais, pela notícia enquanto novidade, informação nova, conhecimento. Compro todos os dias o meu jornal e não consigo dormir sem o ler, entremeado com um bom livro. Daí estar bem vigilante às suas mudanças e contratempos. Não vivem dias claros, encalacrados entre os proveitos dos negociantes e a inteireza dos factos, entre um capital sem face e o rosto do interesse coletivo. Alguns deles não podem vender a verdade.
Gosto pois de “O Despertar”, da sua singeleza, humildade e justeza.
Este jornal nasceu e apresentou-se à cidade em 2 de março 1917, na Baixa de Coimbra, mais concretamente, na rua Pedro Rocha, sob a direção de José Pires de Matos Miguens e na «era de ouro» dos jornais. Na sua primeira publicação prometia ao povo empenhar-se na defesa dos legítimos interesses de Coimbra.
A Magna Carta determinava a independência do poder político, posição que lhe permitiria lutar por causas justas. A verdade em todas as suas linhas e páginas.
Quem quiser inteirar-se da sua história de vida é fazer uma investigação demorada pelas suas publicações, arquivadas na Biblioteca Municipal de Coimbra. Dela retirará a conclusão de que foi sempre um jornal da Cidade, da Alta e da Baixa, dos estudantes e dos futricas, a grande segmentação social conimbricense de outrora. Neles se afeiçoa a defesa dos interesses dos grandes comerciantes, tal como a dos pequenos que enxameavam a baixinha e as suas ruas estreitas. Defendeu-os todos quando a razão estava do seu lado. Acusou-os a todos sempre que a prepotência esmagava os mais fracos.
Esteve ao lado dos intelectuais nos momentos em que a sua ciência era posta ao serviço da comunidade. Exprobrou-os, veementemente, quando a razão lhes faltava e do alto da Grande Escadaria, com a sua arrogância, espezinhavam os ditos menos cultos, menos alfabetizados e pobres.
Defendeu o comércio chic da rua Ferreira Borges, o Canal, (ex-rua de Coruche por onde antigamente havia passado o trânsito Lisboa-Porto) quando a sua ação enaltecia a Cidade, mas incriminou-os sempre que se tornavam exploradores desmesurados.
Advogou a favor dos oligarcas da indústria, quando criavam riqueza e davam empregos não exploratórios. Vilipendiou-os quando utilizavam a urbe para seu próprio e único proveito.
Não tinha Clube. A Académica e o União, e todos os outros que faziam fervilhar a Cidade no campo desportivo, eram seus, com tratamentos não discriminatórios. Mesmo nas derrotas todos eram vencedores, porque representavam Coimbra.
Teve um papel relevante na defesa e divulgação das artes e dos grupos culturais da Cidade.
Não admira então que tenha sido um jornal atento e interveniente na preservação do património edificado da Cidade, fazendo-o sempre que alguém lhes causava feridas. Ao consultar alguns jornais constata-se, por exemplo, a defesa feita a favor da Igreja de Santa Cruz, não se emudecendo perante os roubos nela perpetrados e da utilização que lhe era dada. “O Despertar” de 30 de dezembro de 1922 protestava contra o que se fazia nos Claustros de Santa Cruz, “transformados em oficina de carpintaria” e o de 9 de junho de 1920, sob o título “Os preciosos quadros de Santa Cruz”, insurgia-se contra a ruína que ameaçava os existentes na Sacristia da Igreja.
Reconheça-se, também, o papel relevante tido na construção do Café Restaurante Santa Cruz, debatendo com todos os que impediam a obra do «luxuoso café», como se dizia na altura.
A refutação à construção do Café foi longa, árdua e com obras embargadas. “O Despertar” opunha-se à “grande praga de empatas” existentes em Coimbra, obstaculizadores da realização das obras. Matos Miguens, na edição de 26 de novembro de 1921, e num artigo sob o título Café Manuelino, bateu-se arduamente contra eles.
Acabou por ser edificado. A luta do Jornal “O Despertar” por esta causa foi importante.
Inúmeros exemplos destes podem encontrar-se nos arquivos compulsados. Nos dias de hoje, tenta manter esse espírito; por isso se reclama de Jornal das Freguesias e das Comunidades Locais.
É claro o decrescimento da importância dos jornais, por causas diversas. Apesar de tudo, ainda ocupam um espaço de grande destaque no mundo, sendo disso “O Despertar” um bom exemplo. É velho de cem anos. Possui um fio de vida imperdível.
II
Sei de uma desempregada, já de longa duração. Tem 40 anos, é engenheira, tem experiência adquirida em empresas privadas, mestrado e pós graduações, em áreas de importância fulcral para a economia portuguesa. Envia currícula, vai a entrevistas, é facilmente descartável. É velha para a função, tem habilitações a mais e, porventura, pode ser substituída por alguém a quem se paga uma migalhita. Eis a contradição da era pós-moderna ou, como se diz hoje, da pós verdade.
Preferem-se «jovens empreendedores, inovadores, com espírito criativo», um complexo Slogan que ninguém sabe concetualizar, nem explicitar com a «teoria da prática», o que leva muitos deles à desesperança no emprego, a serem escravos do tempo e do patrão, quantas vezes a ficarem atormentados pelas dívidas contraídas. Jovens, jovens, jovens, quantas vezes «andaretes» da baixa política e da finança desenfreada.
Numa altura em que arranjar emprego aos 40 anos se torna cada vez mais difícil, e os conhecimentos adquiridos na realidade do trabalho são relegados e não (re) aproveitados, não admira que a palavra velho, em contraponto, seja uma locução maldita.
A sociedade de consumo desaforada e as políticas que lhe dão suporte, arranjaram antídotos: terceira idade, quarta idade, sénior, idade de ouro, geração grisalha, e sei lá mais o quê. Acorreram a substituir a palavra velho de que eu tanto gosto, na minha provecta idade, mas que a maior parte das pessoas já tem relutância em proferir e se desgosta quando os outros a pronunciam a seu respeito.
E eis que proliferam «botequins» criados à pressa, a retocar o corpo e a alma dos velhos, a tirar rugas, a fazê-los emagrecer, a tratar da sua saúde e do seu pacote de viagens, para que pareçam sempre, sempre, jovens.
Há anos, a palavra velhice significava repositório de conhecimentos, sabedoria, experiência. As engelhas representavam, ao mesmo tempo, os obstáculos e a sapiência da vida.
Gomes Fernandes colunista do Jornal de Notícias, em 22 dezembro 2016, tratou o problema da velhice com proficiência. E alega com exemplos: quem diz vinho sénior? Seria envergonhar o vinho avelhentado em casca de carvalho, com estágio de tempo, qualidade e valor. O meu velho e leal amigo será o meu amigo da terceira idade?
O mesmo se poderá dizer da velha de séculos e prestigiada Universidade de Coimbra. Alguém ousará apelidá-la de Universidade Sénior de Coimbra? O Jornal “O Despertar”, hoje a comemorar 100 anos, é um jornal da quarta idade, ou um velho jornal, com uma vida longa ao serviço da comunidade onde se insere?
A questão da velhice tem hoje uma carga pesada. A dita política social de emprego agradece os nomes novos. A sociedade rígida que os acolhe, há tempos perdeu os valores de respeito pela «ancianidade». Hoje vive-se, essencialmente, em redor de valias económicas e financeiras.
Como já devem ter percebido, apesar da controvérsia, a razão de ser velho ou sénior preocupa-me, mas não me é essencial. Cada um que escolha dar valor e nome à velhice e ao saber que transporta, prolongando-a com a dignidade e qualidade que entender. A verdadeira questão está plasmada no desprazimento que se lhes dá, ao findarem a sua corrida em último lugar – sós e sem dignidade.
Eu tenho quase 74 anos, sou velho. Gosto que me chamem velho. Não sou sénior, deixei essa designação para o futebol. Velho é que sou. Com algum saber, memória que baste, por enquanto, e sempre disposto a aprender a aprender. Sustento, eu sou velho.
“O Despertar” também é velho e assume-o. Não tem medo.
Os tempos perpassam / As memórias perduram / As horas infinitam / Os minutos coabitam / Os segundos… / São os ponteiros / Dos tempos que nos restam…
ANTÓNIO INÁCIO NOGUEIRA (Colaborador de “O Despertar”)